Texto publicado originalmente na Revista Geni (2013-2016)
Geni é uma revista virtual independente sobre gênero, sexualidade e temas afins. Ela é pensada e editada por um coletivo de jornalistas, acadêmicxs, pesquisadorxs, artistas e militantes. Geni nasce do compromisso com valores libertários e com a luta pela igualdade e pela diferença.
Cena 1: Memória
FADE IN.
EXT. TANQUE DA CASA DE FAMÍLIA CATÓLICA.
TIA (assustada, para a avó do menino): “Esse menino está vendo filme brasileiro!”
INT. SALA DA CASA DE FAMÍLIA CATÓLICA.
TIO (à parte, empolgado): “Hoje tem filme brasileiro no SBT!” (esfregando as palmas secas das mãos).
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O cardápio podia incluir títulos como Os bons tempos voltaram: vamos gozar outra vez ou Histórias que nossas babás não contavam ou A fêmea do mar. O seletor da TV deixava o eterno canal 5 quando isso acontecia. Eram os anos 1990 e nem existia mais a famosa faixa da programação da TV Record dedicada ao cinema brasileiro, mas ainda se chamava qualquer sessão de “Sala Especial”. (Pra quem não sabe, o programa era exibido entre 1979 e 1986 depois do famigerado programa O Homem do sapato branco).
Havia exibições de filmes nacionais na Globo, na Band ou no SBT, mas era mais certo sintonizar as faixas “Cinema Brasil” na CNT/ Gazeta ou “Cine Brasil” na TV Cultura (sendo que esta última tendia a ser mais cult, enquanto a primeira oferecia a certeza de pelo menos uns peitinhos no vídeo).
Eu era só um menino curioso. Gostava da visão dos corpos que surgiam naqueles filmes. E secretamente começava a gostar da reação do meu corpo diante de seios, bundas, peitos e pernas. Logo eu saberia que reagia assim tanto com as imagens das atrizes quanto dos atores – que, diga-se, eram bem menos interessantes, mas acabavam sendo o corpo masculino que eu tinha à mão (sem trocadilhos!).
Naquele mundo anterior a todos os ‘ismos’ que eu conheceria depois, era tudo muito simples: “o cinema brasileiro” a que se referia minha tia (preocupada com o futuro da nação!) era simples e puramente a pornochanchada – um termo pra se pronunciar no mesmo tom de repúdio com que as carolas diziam outra palavra: “indecência”.
Cena 2: Hierarquias e gostos
INT. SALA DE UM CURSO DE 20 HORAS DE HISTÓRIA DO CINEMA.
ESTUDANTE 1: “De cinema nacional, só o Gláuber mesmo!”
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A pornochanchada é uma daqueles assuntos que expõem muito bem nossa mania de críticas automatizadas, nossa mania de criar hierarquias a partir das coisas culturais de que gostamos, nossa mania de categorizar tudo que é popular como sendo de menor qualidade e, por fim, nossa mania de maquiar a ignorância sobre um assunto disfarçando com desprezo e ironia.
Acontece que muitas vezes esses posicionamentos ficam tão naturais que esquecemos de pensar quando é que eles ficaram naturais. Quer ver? Se você abrir o dicionário Houaiss vai encontrar a seguinte definição para pornochanchada: “Subgênero de filmes popularescos de baixíssima ou péssima qualidade conceptual, formal e cultural, caracterizados por cenas de nudez, de sexo explícito e diálogos que mesclam pornofonia e humor freq. escatológico”.
O horror. O pior do cinema nacional. Popularesco.
Aliás, talvez não haja palavra com mais resquício da ditadura que “popularesco”, muito usada na crítica cultural para se lutar pelo bom senso e bom gosto. Basta lembrar que parte da conquista de prestígio da Rede Globo nos anos 1970 esteve ligada a um desejo de se afastar disso.
O interessante da definição de Houaiss é que ela concentra muitos dos lugares-comuns que temos associado ao cinema nacional produzido entre fins dos anos 1960 e meados dos 1980.
São momentos muito diferentes, produções as mais diversas que ficaram sob o guarda-chuva do termo pornochanchada. A televisão teve um papel importante na gestação desse imaginário ao isolar as produções nacionais nos horários mais tardios, criando uma aura de “filmes proibidos”.
Ao longo dos anos, a pornochanchada foi virando um retrato embaçado de uma época que o país tentava deixar para trás. Mas a que custo?
Cena 3: No escurinho do cinema
INT. DIA. SALA DE AULA DE UM CURSO QUALQUER DE HUMANAS.
PROFESSOR: “Taí um sinal do lixo cultural produzido pela ditadura!”
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A pornochanchada – e tudo o que se quer fazer caber dentro do termo – reflete um momento muito específico de consumo cultural no Brasil. Particularmente, acho o período muito interessante porque é nele que começa a se fixar as nossas grandes indústrias culturais. Quem pesquisar um pouco vai perceber que houve uma grande mudança na forma de circulação e de acesso a livros, jornais, discos, espetáculos e a meios como a televisão e o cinema.
Parte desse boom tem relação direta com o desenvolvimento de uma politica cultural delineada no regime militar e bastante preocupada com o nacionalismo. Havia um interesse muito grande em promover o consumo e acesso a bens culturais relacionados ao universo brasileiro. Contra os chamados enlatados, fazia-se uma televisão competitiva (e nossa TV, comparada a de outros países no mesmo período, apelou pouco a produções estrangeiras). Já o cinema era favorecido por leis que determinavam a exibição de uma cota de filmes nacionais em todas as salas.
Foi com base nisso que se criou no Brasil um dos momentos mais interessantes e criativos do cinema – começando no Rio de Janeiro, com as produções do chamado “Beco da Fome”, e se fixando (produtiva e comercialmente) na “Boca do Lixo” paulistana (região da rua do Triunfo, na Luz).
Diferente do que acontece hoje em dia, os filmes eram feitos com investimento de produtores – não havia os benefícios de leis de incentivo, o que significa que a aventura do cinema foi bancada por gente que queria fazer na raça.
Aos poucos, o cinema foi se transformando em empreendimento comercial e produzia-se muito, a ponto de haver filmes prontos em um mês (entre filmagem e pós-produção). O público lotava as grandes salas de cinema do centro de Sao Paulo. Grandes mesmo: só para se ter uma idéia, o Cine Marabá, na República, tinha capacidade para mais de 1500 pessoas! Foi, portanto, um período de grande diálogo entre os realizadores e o público – majoritariamente masculino.
Cena 4: Como era gostosa a pornochanchada
INT. NOITE. MESA DE UM BAR.
ESTUDANTE: “Cara, e a pornochanchada que a Xuxa fez?”
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Sob o nome de pornochanchada estão filmes muito variados. Há dramas, filmes policiais e filmes de terror (que enganavam o público com títulos como Possuídas pelo pecado ou Excitação, dois exemplos de Jean Garret, um dos melhores diretores que tivemos e que poucos conhecem).
Mas o que ficou marcado no imaginário foram as comédias eróticas. Eram histórias leves, recheadas de clichês narrativos e estereótipos (muitos dos quais estavam presentes também na ficção televisiva). A nudez funcionava como chamariz, junto com os títulos apelativos que incomodavam a família e as pessoas de bom senso. Diz-se até que houve em Curitiba uma Marcha da Família contra a Pornochanchada!
As influências desses filmes eram muitas. Vinham da própria chanchada (outro gênero popular que marcou o cinema brasileiro nos anos 1940), das comédias eróticas italianas (como filmes de Lando Buzzanca) ou mesmo dos chamados exploitation (tidos como sensacionalistas por explorar situações de violência). O roteiro e as situações também remetiam às tradicionais comédias de costumes do teatro – é como se muitas peças do século XIX fossem atualizadas para o ambiente dos anos 70, com as consequentes modernizações das relações de raça, classe e gênero. O resultado: um cinema bastante popular, renegado pela crítica e pelos guardiães do bom gosto.
A história desse cinema popular está ligada aos diferentes momentos cultural, econômico e politico do país entre o fim dos anos 1960 e a redemocratização, nos anos 1980. É possível identificar pelo menos três momentos diferentes nessa produção. O primeiro, no começo dos anos 1970, quando os filmes tendem a ser mais ‘ingênuos’ no tratamento da sexualidade. Um bom exemplo é Essa gostosa brincadeira a dois, praticamente uma comédia romântica dirigida por Victor di Mello e estrelada pelo galã Carlo Mossy. Mais pro fim dos anos 1970 e começo dos 1980, há filmes em que a questão sexual é tratada de forma mais ousada (veja-se o caso do filme Mulher Objeto, sobre uma esposa frígida). A fase final se deu ao longo dos anos 1980, já com filmes de sexo explícito. Esta última fase é tida como a decadência da indústria da boca – o momento político e econômico afastou alguns produtores e também o público. Ao mesmo tempo, pelo seu caráter “trash”, acabou sendo tomada como um retrato de tudo que se havia produzido antes (e não é raro haver posts na linha “10 maiores bizarrices do cinema nacional” a partir da reunião de algumas cenas deslocadas de filmes dessa época).
Cena 5: Bonitinha, mas ordinária
EXT. DIA.
MILITANTE (para o amigo): “Nada mais machista, misógino e homofóbico que a pornochanchada brasileira!”
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Ponderação talvez seja uma das coisas mais difíceis em tempos marcados por certezas, radicalismos e rigidez de pensamento. Todo dia deveria ser bom lembrar daquele dito popular que sugeria cuidado para não jogarmos fora o bebê junto com a água suja do banho. Essa imagem é genial, e serve aqui pra repensarmos certas ideias prontas sobre pornochanchada e cinema nacional.
Apressados, podemos escrever textões sobre como a pornochanchada é o retrato do machismo, da homofobia, do classismo etc. Podemos e não iríamos extrair dali nenhuma novidade. Por outro lado, é interessante verificar como os filmes veicularam e, em certa medida, moldaram uma moral sexual que, se analisada detidamente, não tinha nada de coerente – e é nessas contradições que acho que está o mais interessante das produções.
Evidente que o que alimenta a pornochanchada é, não só o momento nacionalista, mas a própria cultura machista e toda uma produção erótica/pornográfica para o público masculino. Os filmes lidam com isso, com um imaginário sobre o homem brasileiro. Mas também é possível observarmos os diferentes modos como a pornochanchada veiculou mensagens de valorização da liberdade sexual e da sexualidade e prazer femininos. Eu me lembro, por exemplo, de uma cena de A Mulher sensual (Antônio Calmon, 1981) em que uma fotógrafa pergunta para a modelo: “Você já teve um orgasmo?”. Em Mulher objeto (brilhante direção do autor de novelas Silvio de Abreu), o título engana e o que se vê é um ensaio sobre uma mulher que não encontra prazer sexual com o marido.
Não se trata de reconsiderar a pornochanchada sob uma ideia simplista de resistência, algo muito comum quando entramos em contato com manifestações populares. Também é preciso cuidado pra não cair numa idealização nostálgica de tempos tidos como “politicamente incorretos” – uma postura fácil se considerarmos os tempos atuais como “caretas”. O que penso é que a pornochanchada conseguia de alguma forma veicular também mensagens que poderíamos chamar de progressistas – ou que questionam os dogmatismos com que frequentemente tentamos enfrentar o mundo.
É evidente que essa postura talvez seja mais difícil de desenvolver. Frequentemente vemos um filme com tudo o que nos formou, com nossa história de vida, com nossas ideias e nossas certezas. O olhar já chega emoldurado. Ficamos acostumados – e recentemente mal-acostumados – porque nossos olhos têm à disposição uma quantidade tremenda de produções. E com tanta coisa pra ver, porque ver o que todo mundo já considerou de antemão como ruim?
Não é incomum eu comentar com amigos sobre algum filme nacional e ele já ser previamente categorizado como desinteressante: porque o ritmo é outro, porque a produção é barata, porque a atuação é diferente, porque é dublado. Claro, o cinema tem muito de técnica, e nos acostumamos facilmente com a evolução dessa técnica. Ficamos acostumados e exigentes. O problema é quando o costume, os dogmas, as hierarquias culturais nos impedem de ter outras experiências de olhar. E eu acho que a pornochanchada, para além da superfície, pode ter muita coisa a dizer. Mas aí já é a vez de vocês descobrirem!
Cena 6: Convite ao prazer
FADE OUT. CRÉDITOS
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Filmes para se divertir ou para ver a “pornochanchada” (e os limites do termo) com outros olhos. (Obviamente, que entrego aqui os que estão entre meus preferidos).
A difícil vida fácil (Jece Valadão/Alberto Pieralisi, 1972)
Mulheres dançam em aquário numa boate – e Emiliano Queiroz rouba a cena. Deliciosamente clichê.
Essa gostosa brincadeira a dois (Victor di Mello, 1974)
Uma comédia romântica com participação de Vera Fischer (Meg Ryan invejaria).
Excitação (Jean Garret, 1976)
Terror com umas das melhores sequencias iniciais do nosso cinema.
República dos Assassinos (Miguel Faria Jr., 1979)
Esquadrão da morte, Sandra Bréa cantando e o melhor beijo gay do cinema brasileiro.
Os Imorais (Geraldo Vietri, 1979)
Vietri escrevia novelas das sete na TV Tupi, mas aqui resolveu contar uma história gay que não teria lugar na televisão.
Giselle (Victor di Mello, 1980)
O suprassumo da liberdade sexual? Fazer a família inteira.
Mulher objeto (Silvio de Abreu, 1980)
Melhor filme de Helena Ramos, a musa da pornochanchada brasileira.
A mulher que inventou o amor (Jean Garret, 1980)
Com Aldine Muller e roteiro de João Silvério Trevisan http://revistageni.org/09/acao-direta/. Sem mais.
Liliam, a suja (Antônio Meliande, 1981)
Um filme que se o Tarantino conhecesse, adoraria refilmar.
Rio Babilônia (Neville D’Almeida, 1982)
Clássico que passava sempre com cortes na TV. Cena inesquecível: o ménage a trois na piscina.
Beijo na boca (Paulo Sérgio de Almeida, 1982)
Baseado no “caso Lou”, tem participação de nossa diva Claudia Celeste.
Onda Nova (José Antônio Garcia e Ícaro Martins, 1983)
Cinefilia, futebol feminino, masculino versus feminino, e muito sexo nessa pornochanchada cult.
Amor maldito (Adélia Sampaio, 1984)
Nosso primeiro filme lésbico nacional, justamente sobre a lesbofobia.