>> texto traduzido ao espanhol e publicado no livro
El Dedo en el Porno, organizado por Laura Milano.
Pornô Desviante: mexer na lógica de produção e consumo de pornografia
por EdiyPorn
“A pornografia é uma arma poderosa
demais para ser deixada na mão de outrxs”
Paul B. Preciado
Contexto: inflexões culturais
Nas últimas décadas, os debates em torno de questões de gênero, raça e classe amadureceram e se complexificaram no mundo todo: branquitude e cisgeneridade são conceitos de uso cada vez mais comum, reconhecidos como elementos estruturantes da nossa subjetividade. Os paradigmas do cis-tema estão sendo compreendidos e as disputas em relação a opressões estruturais estão em ebulição. Tem ficado cada vez mais evidente a toxicidade que nos condicionaram a reproduzir e, à medida que vamos nos conscientizando sobre os vetores que organizam nossas estruturas socioculturais, vamos entendendo que nossas subjetividades foram moduladas de forma limitadora. Somos parte de um movimento geracional que está comprometido com o rompimento desse fluxo de toxinas compulsório; colaboramos com a criação de novas estruturas e ideias que buscam dar continuidade aos processos de ruptura e emancipação que nos trouxeram até aqui.
Nossas subjetividades são construídas em diálogo com o meio social em que habitamos. Aprendemos e absorvemos uma série de referências socioculturais diretamente ligadas ao “acesso aos bens materiais e imateriais, suas hierarquias e suas representações”. Para Suely Rolnik, nossos modos de subjetivação estão condicionados ao domínio do “inconsciente colonial-capitalístico”, uma assimilação de códigos vindos do cotidiano, intrínsecas às nossas condições sócio-culturais e seus respectivos imaginários. A experiência da subjetividade na qualidade de “sujeitx” se dá por meio do que Rolnik conceituou como “pessoal-sensorial-sentimental-cognitiva”, onde camadas da nossa construção psíquica estão cafetinadas, como ela diz, pela lógica colonial no regime capitalista. Uma vez reconhecido o nível de cooptação pelo sistema, é preciso que nos reconectemos com nossa pulsão, segundo ela, tecendo redes micropolíticas e decodificando nossos atravessamentos, em busca de processos e procedimentos emancipatórios.
Em um vídeo no qual debate estereótipos e preconceitos, a drag Rita Von Hunty nomeia de Processos Cognitivos da Cultura o modo como associamos determinadas características a determinadas imagens, criando o significado que damos às coisas. Ela relaciona o processo de produção dos significados das palavras com o processo industrial e o projeto político de manter grupos minoritários politicamente em seu lugar oprimido por meio da linguagem e do imaginário gerado por ela. Em conversa sobre seu livro Memórias da Plantação, a artista e psicanalista Grada Kilomba aponta questões presentes na nossa língua, acusando suas limitações e racismos. Para ela, nossos idiomas precisam ser reinventados para que possam abarcar sujeitas em sua complexidade de gênero e raça. Os construtos culturais agem também sobre o corpo: a atriz e dramaturga Janaína Leite, quando se vê atuando tecnicamente em uma cena pornô, acessa em sua memória o repertório de imagens relacionadas àquela situação a fim de buscar referências para os seus movimentos gerando um questionamento sobre o acervo imagético criado pela pornografia. Se pensarmos que as imagens criadas pelo pornô tradicional são frutos de processos cognitivos pouco conscientes de suas toxicidades, no momento em que se consome produções criadas dentro dessa lógica, colocamos em ação repertórios de imagens que nos levam a reproduzir uma ideia de desejo e prazer que não necessariamente é aquela que nos contemplaria. As hierarquias sociais impostas pelo cis-tema colonial-capitalístico se mostram mais complexas quando falamos de territórios como os latino-americanos, cujas sociedades atuais foram criadas por colonizadores europeus a partir da invasão de terras indígenas, chacinas e da escravidão de povos originários e negros. Para a artista Bruna Kury, “só quando a hegemonia e os sentimentos cognitivos do capitalismo falirem é que podemos voltar a falar de desejante/desejável de uma forma mais digna.” Nesse sentido, cabe questionar: quais corpos são desejantes e quais são desejáveis dentro da nossa sociedade? Como interferir na estrutura social que fundamenta nossas estruturas de desejo? Como mexer nos processos cognitivos do tesão? Não somos capazes de responder a essas perguntas, porém vemos o pornô desviante enquanto meio de acesso e estratégia que cria fissuras nessas estruturas.
Em “Pós-pornô, dissidência sexual e a situación cuir latino-americana: pontos de partida para o debate”, a pesquisadora Erica Sarmet contextualiza os pilares da pós-pornografia, resgatando a história da América Latina e seus movimentos de subversão de imaginário sexuais e políticos. Para Sarmet, “diversos artistas trabalharam com questões referentes ao corpo, à sexualidade, à pornografia e à identidade de gênero sem que seus trabalhos fossem enquadrados nessas categorizações” de pospornografia; reconhecemos que há uma série de artistas e ativistas colocando em pauta questões relacionadas à pornografia na literatura, no audiovisual, performance, nas artes visuais e em espaços públicos desde antes da criação do conceito pós-pornografia, que ocorreu nos Estados Unidos nos anos 1980. Também em busca da latino-americanização das discussões, Hija de Perra escreve um artigo criticando o termo queer, atentando para a importância de nos contextualizarmos enquanto latinoamérica e compreendendo que as lógicas e os termos que importamos do norte global não necessariamente se encaixam no nosso contexto. Entendemos que a questão de gênero e sexualidade é parte do corpo e da subjetividade e, por isso, é indissociável de experiências de raça e classe. Por isso, hoje falamos de teoria cuir/kuir/cuy e interseccionalidade: não conseguimos desvencilhar nosso presente das consequências de sermos uma sociedade construída a partir de uma violenta colonização, e essa tem sido uma temática recorrente nas abordagens pós-pornográficas na latinoamérica nos últimos anos.
As perspectivas interseccionais nos movimentos culturais e contra-culturais são uma marca importante da nossa contemporaneidade: estamos mais conscientes dos processos cognitivos da cultura de que nos fala Rita Von Hunty. Estamos criando outros significados e outros parâmetros cognitivos por meio da produção de referências socioculturais comprometidas com demandas interseccionais, que articulam gênero, raça e classe, questionando o cis-tema colonial-capitalístico. Trata-se de um ativismo que tem elaborado cruzamentos entre os movimentos que buscam políticas de equidade e de reparação histórica – Ventura Profana profetizando Jup do Bairro, nua, tomando a faixa presidencial, é a dissidência orgulhosa da própria corpa, tomando espaços de poder. Os reflexos dessa movimentação em rede têm se mostrado em trocas micro e macro políticas; nas eleições municipais de novembro de 2020, tivemos o maior número de pessoas trans eleitas na história, sendo a mulher vereadora mais votada do país uma trans negra: Erika Hilton, do PSOL. Ela se consolida como uma líder política que está em diálogo com as frentes ativistas que atuam por menos opressão; Hilton é uma das agentes que está na política institucional com um olhar interseccional, levando a potência desse movimento geracional: “Estamos dando um passo de cada vez. A gente tem urgência, pressa não. Porque foram 388 anos de escravidão, quase 140 de uma falsa abolição. […] A gente chegou aqui com muita calma, muita estratégia, muita resiliência. Então seguimos na urgência, mas sem pressa. E é preciso dizer: as coisas vão mudar. […] Nós somos a possibilidade da ruptura de um projeto nefasto, colonizador, genocida que se implementou no Brasil desde a invasão dessas terras.” A vereadora ainda participou do filme “Pra Onde Voam as Feiticeiras”, que estreou no mesmo mês de sua eleição. Dirigido por Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral, o longa é um retrato do ativismo interseccional em São Paulo e é construído transgredindo as hierarquias do audiovisual, de maneira coerente com o discurso da equidade e do lugar de fala. O filme acompanha Ave Terrena, Gabriel Lodi, Mariano Mattos Martins, Fernanda Ferreira, Ailish, Preta Ferreira, Thata Lopes e Wan Gomez, performers LGBTQIA+ que conduzem cenas públicas no centro de São Paulo e fazem encontros com outros segmentos de movimentos sociais, gerando debates sobre questões de identidade, desigualdade, privilégio e opressão.
Vemos cada vez mais narrativas e poéticas elaboradas desde perspectivas historicamente apagadas e marginalizadas. “Tu vem me dizer / Que só trepa com homem bombado / Apenas pare, querida / Vem fuder com os vyado / Cê sabe, não sou sarada/ E não faço academia/ Mas arraso numa cama/ Inventando pornografia”, diz a letra de “Pare, Querida”, música de Linn da Quebrada lançada em 2016. No caso de Linn, são versos e performances que acusam o racismo e a transfobia e que descrevem imagens de relações sexuais que ironizam o falocentrismo, trazendo outras possibilidades de prazeres. Ela, assim como Jup do Bairro e Ventura Profana, pregam a união em rede de corpas dissidentes por meio da reinterpretação da espiritualidade. Então, Ventura Profana, a pastora das travas, propõe os novos valores: “não adianta ungir quem não obedece ao caos.” A moral e os bons costumes são aliados fundamentais para a manutenção da estrutura social capitalista que incentiva os cidadãos de bem à tão necessária ordem e progresso. Para quem? A custo de quais vidas? “Ora pois, quando fomos amarradas e lançadas na fornalha/ Em sua mais alta temperatura/ Por não nos dobrarmos diante do trono de nenhum senhor/ Foi que Deise se revelou a nós”. Em julho de 2020, Ventura Profana e sua parceira musical Podeserdesligado lançaram o álbum Traquejos Pentecostais para Matar o Senhor, enaltecendo vivências trans, pretas e gordas e debochando da branquitude classista e das hipocrisias do evangelismo. Essas três travestis, multiartistas e negras, são referência importantes para pensarmos estratégias de existência e resistência na produção de novas formas de subjetividades e imaginários sexuais, afetivos, espirituais, raciais e de gênero. Pela urgência de suas temáticas e pela qualidade de suas poéticas, elas vêm ganhando cada vez mais visibilidade e acesso a meios de comunicação de massa. Jup e Linn apresentam um programa de entrevistas no Canal Brasil e Ventura foi uma das finalistas do Prêmio Pipa 2020, o maior prêmio brasileiro voltado às artes visuais.
Em nossos processos de emancipação colonial e mudança de paradigmas, a interseccionalidade e a micropolítica são conceitos fundamentais para que possamos romper com os valores que fazem vivências não normativas serem colocadas à margem. Bruna Kury, em debate da Unicamp realizado em junho de 2020, tensiona a questão moral da dignidade do afeto em relação à monstruosidade de corpas soropositivas ou que se afastam da hegemonia. Em um paralelo à lógica territorialista que desaloja povos indígenas para construir hidrelétricas ou que forja incêndios em favelas para construir shoppings e galerias de arte, Kury usa o termo “gentrificação do afeto” para a economia higienista que o espectro do desejo hegemônico cria. É fundamental reconhecer que o plano urbano é concebido a partir dos mesmos paradigmas que constroem o nosso desejo e que é determinante para o desenvolvimento das nossas subjetividades e do modo como nos relacionamos. Ou seja, o mesmo higienismo que faz vidas não abastadas serem marginalizadas é aquele que separa o normal e o adequado daqueles que não são dignos. Por essa lógica, nos condicionaram a sentir nojo dos próprios cheiros e fluídos e vergonha de certos desejos e prazeres a gentrificação do afeto é um dos fatores que faz a taxa de suicídio de pessoas sexo-gênero dissidentes ser tão alta.
O cis-tema colonial-capitalista molda nossas vidas de maneira inexorável nossa estrutura social e psíquica está baseada na lógica racializante, binária, hierárquica e capacitista. Para Pachaqueer, coletivo de monstras performers, “de uma ou outra forma, todes estamos doentes ou sãxs, presxs a estereótipos e ideais para poder estar dentro desta sociedade a qual prefiro chamar ‘suciedad’, ninguém está livre dos tentáculos neoliberais”. Não existe quem se livre de tudo o que foi ensinado e imposto. Partindo dessa admissão, podemos reconhecer as lógicas tóxicas que somos capazes de reproduzir e então atentarmos às nossas próprias ações para romper com seus fluxos. Interseccionalidade, afinal, é sobre se contextualizar histórica, social e territorialmente, fazer alianças, se unir e se fortalecer em rede.
Pornô Desviante: arejar imaginários sexuais
É a partir dessa premissa que o pornô desviante da EdiyPorn se cria: baseado em uma ética emancipatória que a um só tempo enfrente as dinâmicas de marginalização e de privilégios presentes na estruturação do desejo sexual e priorize o tesão e o conforto de quem constrói a cena. Nossos filmes são primeiro sobre corpos e desejos – depois sobre a imagem. Ou como diz a pesquisadora Helen Torres: “Não é só uma questão de corpos diversos, senão também de trabalhar com outros sentidos além do olhar, para que assim a representação seja fruto de todos os sentidos”. Estamos veiculando em nossa plataforma online representações que buscam dar conta desta complexidade: em ediyporn.com distribuímos produções autorais e também de outras pessoas e produtoras independentes. Se a pornografia aciona e constrói nossa subjetividade sexual de maneira profunda, é importante interferir na lógica de produção e consumo desses materiais: para que possamos arejar nossos imaginários sexuais e desfrutar de representações pornográficas que nos contemplem, e que não reproduzamos violências e opressões estruturais. E se o pornô desviante existe a partir do pós-pornô, talvez seja possível dizer que trabalhamos com base em uma ética pós-pornográfica:
O pospornô é de monstras empoderadas que mostram sua sexualidade sem pudores nem dissimulações, que mostram suas feridas de guerra, que mostram o que a sociedade bem-pensante convidou a esconder. Mostram corpos que rompem com o sistema binário de sexo-gênero, com as categorias de orientação sexual, de normalidade corporal e de capacidade… e que não só busca a excitação sexual, senão que buscam que essa excitação seja produzida também através do humor, da ironia e do discurso crítico.
(POST-OP (2013), p. 198)
O pornô desviante é a estratégia que encontramos para fissurar a pornografia, repensando sua forma de concepção e desfrute, buscando uma outra estrutura de produção e circulação de conteúdos pornográficos. Nesse sentido, a EdiyPorn se organiza enquanto um agrupamento de pessoas em busca de oxigenar as subjetividades sexuais, criando novas possibilidades para o que se entende como sexo e suas representações. Estamos formando uma rede preocupada em revisar e discutir as problemáticas da pornografia tradicional e colocar em prática outras formas, mais libertadoras, de criação de pornografia. Somos um coletivo de experimentação sexual, estética e política.
Nossas produções audiovisuais surgem a partir dos nossos corpos, da busca por acessar desejos e da vontade de compartilhar esses processos – partimos de experiências íntimas, onde nos colocamos enquanto corpos desejantes e desejáveis, sujeitxs ativxs e responsáveis pelas próprias narrativas. Trabalhamos de forma independente por não termos patrocínios ou possibilidade de acessar editais públicos, uma vez que a pornografia não tem o status de forma de arte. Por conta dos nossos baixos orçamentos, muitas vezes acumulamos funções dentro das produções, atuando como produtorxs, performers, fotografxs, editorxs, coloristas e por aí vai. Esse intercâmbio nos facilita percepções ético-estéticas na realização de vídeos e filmes e nos possibilita percepções abrangentes na composição de nossos repertórios e no entendimento dos processos de criação.
Lidamos com os pudores introjetados no nosso inconsciente que buscam ocultar questões relacionadas à sexualidade. Na potência e na intensidade de tal investigação, às vezes temos que dialogar com nossas demônias internas – e temos aprendido que elas têm potencial de nos dar informações preciosas sobre quem somos e nossos devires. Quando umx performer se coloca como agente numa produção pornográfica, nosso trabalho enquanto produtora e equipe é facilitar para que essa pessoa esteja à vontade e entre em contato com sua pulsão criativa e seus desejos, vivenciando seu tesão de forma explícita e sincera. Um dos lugares de potência vem sendo formar espaços de confluência, contribuindo para a participação de pessoas interessadas em trabalhar com pornografia, mas que nunca tiveram oportunidade ou coragem. O que nos interessa desse intercâmbio é ver as multiplicidades de performers e performances, e que, no momento da gravação, elxs se reconheçam enquanto corpos que desejam e que são desejáveis. Acessar essa sensação exercendo o exibicionismo de performar para um pornô desviante é uma possibilidade de resposta a normas estéticas e comportamentais instaladas pela pornografia mainstream e suas representações objetificadoras e exotificantes. Criar as próprias narrativas é um movimento de reparação.
Exploramos a potência de expandir os nossos limites, vivenciando fetiches e/ou realizando experimentações sexuais e estéticas. Nesse sentido, refletimos sobre a ampliação das compreensões de si que as vivências sexuais podem nos apresentar; podemos ser e explorar as muitas personas que habitam em nós. “Vil, Má” é um documentário de Gustavo Vinagre cuja protagonista é Vilma (VINAGRE, Gustavo (2020)), escritora e dominatrix, ela explodiu nos anos 1970 escrevendo contos eróticos para revistas brasileiras. Os textos eram criados a partir dos programas que ela fazia com seus clientes fetichistas: cada situação demandava uma determinada performance para que Vilma pudesse acessar e dialogar com o desejo do cliente. No filme, ela ressalta que as experiências que viveu lhe trouxeram abertura para experimentações de si mesma; com a prática, ela foi adquirindo segurança e desvendando seus próprios territórios e limites conforme se desenrolavam as negociações entre seus desejos e os de quem a contratava.
Ajustamos nossas performances sociais de acordo com o espaço em que nos encontramos, com nosso humor, objetivos ou interações interpessoais. O modo como nos portamos é parte do arsenal de códigos culturais que aprendemos ao decorrer da vida. À medida que vamos acessando referências que desautorizam as normas estabelecidas, vamos deformando e modificando como nos apresentamos. As performances sexuais são parte desse mesmo processo, mas não acessamos suas referências somente por meio de materiais que falam diretamente sobre sexualidade. Entendemos que essa construção está acontecendo o tempo todo, como Bruna Kury diz: quando assistimos o casal cisgênero, heterossexual, de pele branca ou clara e corpo magro apresentando o telejornal, nosso imaginário sexual também está sendo alimentado. Não podemos agir sobre o que a televisão nos oferece, mas sim sobre como recebemos essas informações, compreendendo que a cultura e a subjetividade estão em constante diálogo. Assim como qualquer outro produto cultural, a pornografia tem o poder de reafirmar construtos sociais e modos de vida; cabe a quem produz esses conteúdos escolher o que valorizar e a quem consome, optar por iniciativas nas quais acredite. Atuar na contramão dos modelos normativos nos posiciona enquanto agentes de uma micropolítica que busca o rompimento desses padrões hegemônicos, fortalecendo as dissidências de que fazemos parte e com as dialogamos.
Outras representações e o mercado sexual-capitalístico
A EdiyPorn foi criada a partir do desejo de nos estruturarmos e de estabelecermos uma alternativa à pasteurização do pornô hegemônico. Dentro da plataforma online, o conteúdo está dividido em quatro abas principais: Diversos, onde veiculamos gratuitamente textos, vídeo-performances, podcasts, fotos, entrevistas e produções que exploram várias mídias e linguagens, trazendo diferentes olhares em relação ao desejo, ao tesão e à putaria; Goze Junte, galeria aberta para troca de vídeos de masturbação, onde recebemos material do público – para participar, basta mandar seu vídeo de masturbação de até 1’ para ediyproducoes@gmail.com; Serviços, em que divulgamos nossos serviços de produção por demanda e realização de performances; e Exclusivo, área do site exclusiva para assinantes em que publicamos nossas produções audiovisuais autorais e de colaboradorxs do pornô independente.
Acreditando que a forma de apresentar nossos conteúdos também é um modo de interferir nas lógicas de consumo de pornô, os vídeos de nosso acervo exclusivo não são separados por categorias, mas estão dispostos por ordem de postagem. Nossas séries agrupam vídeos produzidos sob um determinado conceito: Pornoblock, por exemplo, inclui produções com base fetichista que exploram o apelo estético de luzes, arte e figurinos; DIY – Faça Você Mesme agrupa cenas caseiras feitas por colaboradorxs; Sessão traz vídeos de práticas BDSM, e por aí vai. A pornografia hegemônica condicionou o modo como a consumimos, segmentando os materiais em categorias que refletem nomenclaturas e hierarquias e suas limitações: o que é considerado mais desejável será acessado com mais facilidade (cis-ht, branco e magro), enquanto o que é considerado exótico ou bizarro fica fora da home, acessível apenas mediante pesquisa – e para escrever no buscador é bom saber o que você procura. Pensando na dimensão micropolítica dessas categorizações, optamos por uma navegação que possibilite a quem acesse o conteúdo esbarrar em materiais inesperados, e que nesse devaneio tenha a possibilidade de desvendar outros desejos e prazeres sexuais. Parte da nossa proposta para oxigenar imaginários sexuais é produzir esse deslocamento para fora da zona de conforto gerada pelo lugar comum e defensivo do “esse é meu desejo”. Não queremos respostas, queremos perguntas e descobertas que adubem nossas percepções de prazeres sexuais.
Sem a necessidade de uma narrativa programada que contemple a dramaturgia do que pode ser considerado “sexo” – preliminar/ penetração/ gozo –, nossas produções procuram trabalhar desde outra lógica, na qual o objetivo é prezar pelo conforto e pelo tesão da equipe. A direção das cenas se dá a partir dos acordos e desejos de quem performa, buscando uma dinâmica de set sem as hierarquias usuais do audiovisual. Para nós, é fundamental a comunicação entre performers, câmera e produção, de modo que todos deem seu consentimento para as práticas realizadas em cena e para o modo como se dará a gravação. Durante nossos processos de desenvolvimento poético, percebemos, também, a importância da pessoa que edita os vídeos se deixar envolver pelo material: é nítido quando a edição é feita por alguém que sentiu tesão pelo material ou se sentiu contempladx pelas cenas. Buscamos, durante todo o processo de produção, dialogar, escutar e trocar, a fim de parear os fluxos, de forma que o vídeo final possa transmitir, por meio dos cortes, sons, imagens e cores, a energia do tesão sentido pelos performers.
Em paralelo às produções em vídeo, desenvolvemos uma pesquisa acerca de corpo e performance, investigando a potência de intervenções pornográficas em espaços públicos e privados. As ações, nomeadas Pornoshow, partem do interesse por transgredir as limitações das construções sociais em torno de corpo, sexo e intimidade. Entre intervenções mais ou menos improvisadas, nós nos encontramos para investigar e pesquisar nossas corporalidades e modos de expor o sexual de forma aberta e audaz. Nesses encontros, discutimos vivências pessoais, conversamos sobre consentimento e CNV (comnicação não-violenta), realizamos oficinas de BDSM e rodas de masturbação, entre outros tantos exercícios criados em busca de vivenciar experiências que possam ampliar nossas subjetividades e libidos. Entendemos as ações Pornoshow enquanto dispositivos de hackeamento de imaginários sexuais, nas quais colocamos nossos corpos como campos de experimentação e deslocamos o lugar sigiloso da sexualidade, provocando o público. Em março de 2019, por exemplo, realizamos, no improviso do tesão de carnaval, uma ação que consistia em uma dança anal e uma chuva dourada, seguida por um bate-cabelo respingando mijo pelo ar. A performance aconteceu no BloCú, um bloco de rua LGBTQIA+ que passa no centro de São Paulo, ao som de Jub do Bairro, que cantava no trio elétrico. Um registro da ação viralizou no Twitter até ser respostado pelo então recém eleito presidente, fazendo o Brasil questionar e conhecer o que é Golden Shower?. O caráter político e visceral da entrega do corpo em uma performance busca a potência do processo de descolonização de corpos marginalizados, como colocado por Guillermo Gomez Peña: “Talvez a meta última da performance, especialmente se você for mulher, gay ou pessoa racializada, é descolonizar nossos corpos, e expor esses mecanismos descolonizadores para o público, com esperança de que se inspirem e façam o mesmo.” Se o texto de Peña tivesse sido escrito na última década, talvez houvesse mais identidades oprimidas listadas; de todo modo, o que gostaríamos de ressaltar é a possível dimensão pedagógica na relação com o público. No interior do processo de descolonização, ocorre o que temos nomeado processos de deseducação, no qual compreendemos as limitações dos nossos condicionamentos tóxicos e exploramos espaços de transgressão e emancipação subjetiva.
Elegemos a pornografia como ferramenta de pulsão criativa e o mercado pornô como território de disputa. Uma vez que o pornô tradicional das grandes produtoras ainda detém o monopólio financeiro do mercado pornográfico, agimos para que produções dissidentes e desviantes se infiltrem e façam a economia desse nicho girar para além dos lugares hegemônicos. Buscamos uma ética, um modo de produção e uma estética comprometidas com a reinvenção e ressignificação dos nossos pressupostos; nos interessa romper com a expectativa social construída em relação aos corpos e aos prazeres sexuais. Reconhecemos que a inércia de um espectro de desejo homogeneizado é interessante ao mercado, pois isso traz estabilidade comercial, subjetiva e política. Contudo, hoje os caminhos de distribuição de conteúdo estão em expansão; a internet banda larga e os dispositivos que permitem a produção e consumo de conteúdo audiovisual estão mais acessíveis, impulsionando produções independentes e facilitando a autorrepresentação e a construção de narrativas que até então eram censuradas ou reprimidas. Enquanto produtorxs e consumidorxs, temos a possibilidade – e a responsabilidade – de escolher fomentar as produções que consideramos urgentes. Sobre isso, Jup do Bairro diz:
É importante a gente entender como criar novos imaginários, novas possibilidades de produção, de manutenção, de como tornar nossas redes afetivas em redes efetivas e econômicas. Acredito que nós precisamos estar nos inscrevendo em editais, buscando dinheiro de qualquer outra maneira, mas a gente precisa criar uma rede de fomento autossustentável, precisamos pensar no futuro como uma extensão do presente.
( BAIRRO, Jup do (2020))
Acompanhando Jup do Bairro, para nós é fundamental valorizar as iniciativas que se criam para além da massificação. Entendemos que existem ao menos dois caminhos para nos estabelecermos no mercado: negociar com o mainstream da pornografia, que segue sendo controlado pelo olhar do homem branco-cis-hétero, ou criar novos segmentos econômicos, através de políticas de conscientização do público para iniciativas que colaboram para transformações sociais. Uma vez que um caminho não exclui o outro, optamos pela negociação e pela adição, a fim de fomentar vias onde pessoas dissidentes estejam presentes enquanto agentes produtores e consumidores e que o capital gire dentro das nossas comunidades. Esse é um movimento necessário tanto no pornô quanto na arte, na academia, na ciência, na religião ou em qualquer outro campo em disputa. É tempo de restituição.
Queremos pleitear espaços no mercado da pornografia; afinal, entre o Pornhub e o OnlyFans, o trabalho sexual foi o primeiro a ser uberizado. O que o norte global nos dá como opção é vendermos nossos pornôs em seus grandes portais, desde que nos encaixemos em suas limitações – muitos não aceitam práticas escatológicas, por exemplo. Ainda assim, o dinheiro gerado pelo nosso trabalho não nos é repassado com facilidade e temos que nos desdobrar para encontrar formas de receber os valores. No fim, mesmo conquistando alguma autonomia, as dinâmicas do capital acabam produzindo mais concentração nas mãos de outro homem branco, cisgênero, hétero e rico. É inegável, no entanto, que receber em dólares pela venda de um vídeo possibilita um retorno financeiro maior. Talvez, reconhecendo o cheque-mate que o norte global nos coloca, podemos suspeitar do porquê de existirem tão poucas plataformas pornô sul-americanas. Mas como modificar parâmetros de mercado e criar novas possibilidades de circulação e venda de pornô sudaka? Enquanto não temos uma resposta, seguimos trabalhando para construir possibilidades.
Somos muitas pessoas trabalhando com pornografia de forma independente e são muitos os trabalhos potentes e comprometidos com a interseccionalização nas discussões de gênero, sexualidade, pornografia e trabalho sexual. Com a criação da EdiyPorn, buscamos estabelecer parcerias com pessoas e outras produtoras comprometidas em tomar espaços e criar fissuras habitáveis na pornografia. Estamos trabalhando em uma lógica do afeto, do tesão, do consentimento e da criatividade. Nossa plataforma online ediyporn.com tem o intuito de nos emancipar das armadilhas das grandes empresas e ter autonomia para circular produções latino-americanas de modo acessível para essa região. O projeto vem ganhando forma por meio de parcerias e trocas, criadas em alianças de corpas desviantes. Somos umas tantas que estamos fortalecendo essa rede de putaria política sudaka e agradecemos a quem vem somando com a gente: Casa Cochina, Cabaça Produções, Monstruosas, Beatriz Leite, Renata Torralba, Tormenta Cósmica, Aló, Kupalua, Ren_ata.me, Wand Albuquerque, Lui Castanho, Cia Fundo Mundo, Haus of Binatto, Revista Herética, Coletivo Revolta, Marie Monteiro, Dee Dee, Toni Márquez, Liá Mars, Babi Felice, Pachaqueer, Patricinha Mentiroza, Profânia, Tais Lobo, Aquele Mário, Juan Ejemplo, Laura Milano, Sailor Nébula, Alondra, Southiane, Pequeno Marginal, PigSlut, Xdemonique, Mazo Kinatapa, Mar, Erika Sarmet, Gabriel Bogossian, Gu Bonavita, Luluca L., Br_bottom, RedFord, KillPornStars, Bia Roman, Xplastic, Faíska, Orago, Bixa Puta, Beto C., Pierre Dog, Festa Dando, Revista Geni, Putas Con Tiempo, Viktor Shawer, Esponja, Pisci Bruja, Lu, Franclin Rocha, Ronaldo Serruya, Canafístula, Biu Xa, Gabs Ambròzia, Peluzoi, Angeli Cristie, Pichona, Miss Kass, Índio Maconheiro, Just.red, Keoparda, Cairo, Chubsaurus, Cuarenteners, Outrodudu, Marcos Visnadi, Franco Fonseca, Emanuel Joel, Pedro “Pepa” Silva, Sara Polva, Yuri Tripodi, Camila Biau, Chris The Red, Sladka Gerônimo, George Pedrosa, Bruna Gazoni, Natalia Barros, Vicente Martos, Vinicius Dantas, Uarê, Letícia Bassit, Carmen Faustino, Abhyiana, Zorra, Diego Ciarlariello, Paula da Silva, Aro Dodo, Iván Ignácio, Dinamita Randon, Banda Fisiológica, Rene, Brisalícia, Henrique Ludgério, Rubini, Dinamita Randon, Ian Geike, Rosa Lumi, Calixto, Marisa Dantas, Pantynova.
REFERÊNCIAS:
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KURY, Bruna (2020). Desconstruir sem Fetichizar. Em: MARTINS, A. M., CARVALHO, H. W. e NETO B. (orgs.), Vulgar. São Paulo: Ed. do Autor.
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KILOMBA, Grada (2020, nov.25). Conversa sobre Memórias da Plantação. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=2ez7e-JtgoA&feature=youtu.be
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_AUDIOVISUAIS
CAFFÉ, Eliana; CAFFÉ, Carla; AMARAL, Beto (2020). Para onde voam as feiticeiras. Aurora Filmes.
VINAGRE, Gustavo (2020). Vil, Má. Avoa Filmes, Carneiro Verde Filmes.
_SONORAS
PROFANA, Ventura; PODESERDESLIGADO (2019). Resplandecente.
IDEM (2020). Vitória.
IDEM (2020). Eu não vou morrer.
QUEBRADA, Linn da (2016). Pare Querida.
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MINIBIO
EDIYPORN é uma produtora de pornô desviante que busca reinventar e arejar imaginários sexuais. Trabalhando a partir dos nossos desejos e investigações de prazeres, corpos e tesões, queremos mexer na lógica de criação e consumo de putaria. [ediyporn.com]