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Feminismo e BDSM: jogos de poder

Texto de Marisa Dantas

Feminismo e BDSM: jogos de poder
1.1 BDSM: trocas de poder e prazer

A partir de então, todos serão percebidos no interior de um parentesco global
com os loucos, como doentes do instinto sexual. Mas, tomando ao pé da letra
tais discursos e contornando-os, vemos aparecer respostas em forma de
desafio: está certo, nós somos o que vocês dizem por natureza, perversão ou
doença, como quiserem. E, se somos assim, sejamos assim e se vocês
quiserem saber o que nós somos, nós mesmos diremos, melhor que vocês.”
(FOUCAULT, 1985, p. 234)

Para pensar o sexo atualmente é preciso resgatar suas dimensões histórica,
política e cultural. Nesse exercício, desde Foucault (1985) em sua História da
Sexualidade, mas não só, o discurso sobre o sexo aparece como ferramenta de controle e
a sexualidade como um dispositivo que sempre esteve em disputa de interesses
“burgueses, brancos, heterossexuais e falocráticos” (PELÚCIO, ÁLVARO, 2013, p.1).
Assim, para entender o sadomasoquismo (e o BDSM), busquei a construção desse
conceito e como tal termo tem explicado comportamentos e práticas diferentes ao longo
da história.
A evolução do termo sadomasoquismo foi estudada por Jorge Leite Junior
(2000). Segundo ele, o início do uso dos termos sadismo e masoquismo é controverso, e
alguns indícios atribuem o termo como cunhado pelo Dr. Krafft-Ebing, psiquiatra
austríaco estudioso das “sexualidades anormais”. As palavras foram pensadas a partir
dos nomes do Marquês de Sade e de Sacher-Masoch, e terminaram por designar o
psicodiagnóstico dos comportamentos de sadismo, prazer em infligir dor, e
masoquismo, prazer em sentir dor. Depois, sadomasoquista seria aquele/a que sofre dos
dois males (LEITE JÚNIOR, 2000).
O Marquês de Sade foi um escritor francês de origem nobre que ganhou fama no
século XVIII por sua vida desregrada, orgias e fantasias cruéis. As obras de Sade
tiveram como fundamentos a crueldade, a tortura e a dor relacionadas ao erotismo. É de
seu nome que vem o que conhecemos por “sadismo” – o prazer em causar dor. Seus
livros, apesar de celebrarem a androginia, o travestismo e a bissexualidade, tem como
característica a submissão da mulher, a aversão à vagina e aos valores tidos como
femininos (LEITE JUNIOR, 2000).
Leopold Von Sacher-Masoch foi outro escritor europeu cujo nome deu origem
ao termo masoquismo. Seu livro mais famoso, “A Vênus das Peles”, reflete seu
interesse por mulheres dominadoras num enredo baseado em sua vida. Para ele, homens
deveriam se submeter às mulheres, superiores e dominadoras por natureza. Ele ainda era
vivo quando o Dr. Krafft-Ebing, numa perseguição aos ditos pervertidos, nomeou de
masoquismo uma variante da algolagnia – o prazer na dor física.
Krafft-Ebing percebeu que muitos dos casos de perversão não estavam
diretamente ligados à sensação física da dor, mas à atitude psicológica. Em seu livro
Psychopathia Sexualis (1907), sadismo, masoquismo, fetichismo e antipatia sexual
aparecem como paraestesias, uma das categorias de neuroses sexuais cerebrais. O
sadismo seria a apresentação extrema e patológica de uma tendência masculina à
dominação. O masoquismo, a exacerbação da submissão feminina. Como seus casos
não corroboravam com essa hipótese, ele acreditou que homens “masoquistas”
apresentavam o início da “antipatia sexual” e eram “parcialmente efeminados”.
Ainda no século XIX, houve a importância dos estudos de Freud sobre histeria
(a “doença do útero”), sobre sexualidade infantil e sobre o inconsciente. Suas teorias
atenuavam os limites entre “são” e “doente sexual”. Ampliando visões estritamente
biológicas, Freud procurou explicar as “aberrações” dos comportamentos sexuais pela
via psicológica. O sadismo e o masoquismo foram enquadrados como “Fixações de
alvos sexuais provisórios” assim como as “transgressões anatômicas” (práticas sexuais
com partes do corpo que não os tais genitais) e as demoras no que precedia o ato sexual
(a penetração). Freud colocou que sadismo e masoquismo eram duas manifestações de
uma mesma perversão. As formas ativa e passiva da tal perversão, encontravam-se na
mesma pessoa, advinham de fonte única. É desse pensamento que a união dos termos
cria uma nova categoria de pervertidos: sadomasoquistas. (LEITE JUNIOR, 2000).
A importância dessa história clássica sobre o sadomasoquismo está,
principalmente, em ajudar a entender a construção das visões negativas sobre essa
subcultura e seus adeptos na nossa sociedade. Foi no discurso da ciência psicológica,
tão interessada nos enlaces entre dor e prazer, que o SM ganhou caráter de patologia e
perversão. Mas, os pervertidos sadomasoquistas desses autores, já não são os BDSMers3
da atualidade.

A cultura sadomasoquista formou-se graça à resistência de indivíduos que
não quiseram ser patologizados – e muito menos criminalizados – forjando
assim um “estilo de ser” que se diferencia tanto daqueles de sexualidade
“normal”, quanto dos assassinos e doentes das ciências da psique. (LEITE
JUNIOR, 2000, p.97)

Com intenção de afastar as ideias patologizantes, movimentos da chamada
Leather Culture (Cultura do Couro) passaram a incluir no SM, as letras B e D,
referentes ao Bondage e à Disciplina e Dominação, no par D/s da sigla. E novos
sentidos foram sendo construídos sobre a atividade pelos movimentos feministas, gays e
lésbicos norte-americanos.

Leather é uma categoria mais ampla que inclui homens gays que praticam o
sadomasoquismo, homens gays que fazem a penetração anal com o punho,
homens gays que são fetichistas, e homens gays que são másculos e preferem
parceiros masculinos. O couro (leather) é um símbolo polivalente que tem
sentidos diferentes para diferentes indivíduos e grupos nessas comunidades.
Entre os homens gays, o leather e sua linguagem masculina foram a principal
base para o sadomasoquismo gay masculino desde o final da década de 1940.
Outros grupos articulam desejos similares em diferentes constelações sociais
e simbólicas. Por exemplo, o sadomasoquismo heterossexual, durante quase
todo esse período, não estava organizado em torno do símbolo do leather,
linguagens masculinas ou territórios urbanos. “Leather” é uma síntese
histórica e culturalmente específica na qual determinadas formas de desejo
entre homens gays foram organizadas e estruturadas socialmente. [Gayle
Rubin em entrevista a Judith Butler] (RUBIN; BUTLER, 2003, p. 202)

As saídas do armário foram crescendo. Declararam-se adeptos da cultura SM
pessoas como Foucault; e feministas como Gayle Rubin e Pat Califia advogaram pela
coerência entre feminismo e SM (vamos ver mais sobre isso no próximo capítulo).
Margot Weiss (2011) observava a recente circulação do termo BDSM no meio e aponta
que Reiersol e Skeid (2011) datam de 1991 o surgimento do termo que abarca BD +
SM, S/M e S&M como termos que serviriam para distanciar o estigma social produzido
extensamente pelos estudos patologizantes. Ela também apontou a preferência da
comunidade pelos termos BDSM, SM e S/M. Utilizarei essa nomeação, entendendo que
os outros termos também fazem parte do repertório desse tema e nem sempre estão
ligados a visões patologizantes. Usarei também BDSMer (WEISS, 2011) para nomear
aquelas pessoas que são adeptas da subcultura BDSM.
No Brasil, Wilma Azevedo, Henfil e Glauco Mattoso escreveram autobiografias
fetichistas reais e/ou ficcionais nos anos 1980. O “Manual do podólatra amador” de
Glauco Mattoso (1986) tem em seu enredo a podolatria, fetiche por pés, e também
marca a importância das referências estrangeiras para o que vinha se constituindo aqui
como BDSM. Wilma Azevedo em seus textos “Sadomasoquismo sem medo”, “A vênus
de cetim” e “Tormentos deliciosos” utilizou e divulgou o termo “sadomasoquismo
erótico”. Com seus escritos ela também evidenciou a rede de comunicação fetichista que
existia via classificados dos jornais, e que atualmente migraram para a internet. O
cartunista Henfil é considerado a primeira pessoa pública a assumir a posição SM no
Brasil. Ele afirmou em entrevistas e palestras sobre refletir a si mesmo em seu
personagem Fradin, o masoquista. (FACCHINI; MACHADO, 2013)
BDSM é uma sigla que se refere à subcultura interessada em trocas eróticas de
poder e experimentações com a dor. O acrônimo BDSM é formado por pares de letras
que significam práticas específicas, apesar de interligadas: BD, DS, SM. Apesar de
atividades similares ao BDSM contemporâneo existirem em outros períodos históricos e
diversas culturas, o “fenômeno” que denominamos BDSM é localizado nas sociedades
capitalistas industrializadas (WEISS, 2011). Nesse contexto, todas as atividades são
pressupostamente negociadas, consensuadas e consentidas. Tentarei explicitar alguns
aspectos de cada uma dessas variações, entendendo que no campo do prazer e da
criatividade toda visão é reducionista e que as fronteiras entre BDSM e seu “oposto”, o
sexo baunilha, são feitas de linhas frágeis.
Na dinâmica da cena os corpos ocupam a posição pré-estabelecida em acordo:
Top ou bottom. Top é o corpo que está em posição “superior”, e bottom, “inferior”. Essa
denominação ajuda a afastar tanto a ideia de “atividade x passividade”, como também o
estereótipo de que em toda cena BDSM existe a dinâmica de dominação/submissão.
Esses termos também são usados para designar uma “identidade” no meio, acrescidos da
posição de Switcher, aquele corpo que ora pode ser Top, ora bottom. Essas palavras,
assim como muitas outras encontradas no universo BDSM estão em inglês e suas
traduções nem sempre existem, como no caso Top e bottom, algumas vezes a tradução
pode gerar confusão entre palavras ou os termos em português não são populares no
meio. Os espaços de interação social presenciais como grupos, festas e clubes associamse
à ferramenta da internet que está recheada de sites, blogs, salas de bate-papo, listas de
discussão e fóruns, grupos e comunidades em redes sociais digitais compondo o que é
chamado de “meio”, “comunidade” ou eventualmente “movimento” (FACCHINI; MACHADO, 2013).

Os termos SM e BDSM são usados de forma intercambiável para denotar uma
comunidade diversa que inclui aficionados por amarração,
dominação/submissão, dor ou sensation play (cenas sobre sensações), troca
de poder, leathersex (sexo com elementos de couro), role-playing e fetiches.
A comunidade abraça uma larga variedade de práticas, de tipos de
relacionamentos, e de papéis, que vão desde as práticas mais comuns (por
exemplo, amarração por cordas ou chicoteamentos), para as menos comuns
(cenas com o tema do incesto ou cenas nos quais um dos praticantes imitam
um pônei), e ainda assim todas essas variações são colocadas sob o termo
guarda-chuva do BDSM (WEISS, 2011, p. VII, traduzido)

Bondage se refere à atividade de amarrar, imobilizar, limitar o movimento de um
corpo. É feito com diversos materiais como cordas, faixas, fitas colantes, plástico filme,
correntes etc. Há um componente estético nas amarrações, que podem acontecer em
variadas posições, inclusive com a intenção de suspender o corpo, como nas
performances abertas nas quais as pessoas ficam penduradas mais ou menos imóveis em
árvores. Pode ou não estar no contexto da dominação, assim como promover dor. Essas
amarrações podem ser a finalidade de uma cena ou estar associada a alguma outra
prática como a provocação de sensações na pele, carinhos, chicotadas, tapas,
penetrações e tantas possibilidades quanto a imaginação permitir. Uma variante famosa
do bondage é a prática japonesa do shibari, as amarrações com cordas. B/D se referem
ao par Bondage e Disciplina. A disciplina é um jogo no qual a pessoa que está na
posição top, “disciplina” algum comportamento na outra. Pode ou não fazer uso do
Bondage, assim como de castigos físicos em geral. O referencial Top na prática da
disciplina é a Tamer (domadora) e a bottom é brat (traduzido como “pirralho” para o
português, mais uma das questões de tradução).
O par D/s, dominação e submissão, se refere a uma relação de troca de poder,
uma dinâmica relacional que pode acontecer por uma sessão, um dia ou uma vida
inteira, a partir do acordo. Alguém domina, alguém se submete. Top e bottom, Domme
(ou Dom) e sub, dominadora e submissa. De forma mais ampla que as práticas
anteriores, esse é o jogo mais conhecido do BDSM. Designa uma relação, enquanto as
outras letras referem-se a práticas corporais (pontuais ou não). É uma atividade
ritualística, performática, na qual há um jogo de poder relacional em voga, lida mais
com sentimentos do que necessariamente com sensações físicas e se expressa por meio
de uma linguagem verbal e corporal que performa poder e submissão.
A D/s acontece no nível da relação e não pressupõe por si nenhum tipo de
contato físico. A dominação pode ou não estar associada a castigos físicos e invoca
enredos e narrativas das mais variadas, contextualizando a cena. São enredos possíveis
Daddy/little girl (ou boy), pet/dono, escrava/senhora, mestre/servo, rainha/súdito. Não
são raras D/s online, como mostra o episódio 1 da série Dark Net, da Netflix. No
episódio a personagem Kristie domina Drew por meio de diversos aplicativos que a
ajudam a controlar várias áreas da vida dele, como alimentação e exercícios físicos no
enredo “Dominate and her pet”.
Sadismo e masoquismo são termos que trazem a ideia da dor no corpo. A
bottom, o corpo masoquista, interessa se entregar aos prazeres de sentir dor, de conhecer
os limites da pele. A top sádica se diverte em infligir essa dor, assistir o outro corpo
reconhecer seus limites, a reação da pele ao sentir. É um termo de ordem prática, não
diz respeito uma relação, é sobre uma atividade que acontece aqui e agora e os pares
não tem poder relacional sobre o outro. Diversas práticas são incluídas aqui, como os
espancamentos, as chicotadas, os tapas, o uso de objetos perfuro-cortantes, os
enforcamentos e muitas outras. Da mesma forma que as anteriores, pode ou não estar
ligada à dominação ou performar determinado enredo. Apesar de a Top ter controle da
prática, a baliza do que será feito e dos limites é a sensação da bottom. “Quem
“comanda” toda a cena é o corpo masoquista. Ele é o foco central, pois seus limites
serão os norteadores de toda relação.” (LEITE JUNIOR, 2000, p.91)
Estas trocas de poder se organizam em pelo menos três possibilidades: EPE
(Erotic Power Exchange), PPE (Parcial power exchange), TPE (Total power exchange).
A primeira se refere às relações na qual a D/s apenas de aplica durante uma cena
erótica, enquanto a segunda ocorre em momentos além da cena, mas ainda restritos ou
pontuais, com começo e fim. A TPE é uma dinâmica na qual a troca de poder ocorre
constantemente, os papéis são fixos e a dupla acorda estar “24/7” (24hrs por dia e sete
dias por semana) ocupando os lugares de Top ou bottom, seja ou não em contexto
“sexual”. Nesse tipo de relação pode acontecer de os pares decidirem por protocolos de
consentimento que abrem mão da “palavra de segurança”, por exemplo, ou ter mais de
um protocolo.
Uma sessão BDSM pode ser profissional, casual ou em algum tipo de
relacionamento. As pessoas se encontram para praticar em festas temáticas, em clubes,
nas chamadas masmorras mas também nas suas casas. Algumas relações têm por
objetivo ter sessões BDSM, outras tem o BDSM como uma atividade esporádica. Nem
sempre existem ligações afetivas ou relacionamentos entre as praticantes. Algumas
pessoas usam como mais uma “ferramenta” dentro de relacionamentos afetivo-sexuais,
outras têm o BDSM como principal fonte de prazer – associando em diferentes graus
BDSM ao “sexo”. O termo “baunilha” se opõe à ideia de BDSM, é um termo que
emerge do campo e designa o sexo convencional, o não-BDSM, assim como pessoas
que não partilham a vida fetichista, relações fora desse âmbito e o eixo da vida cotidiana
“fora da cena”. Baunilha é o sabor de sorvete mais básico (há também pontuações sobre
ser o sorvete “sem-graça”, mas isso é outro assunto).
Essas denominações são amplas e agrupam uma série de prazeres e práticas. No
BDSM os detalhes de cada fetiche se fazem importantes para a composição de uma cena
e para a negociação explícita, conhecimento de possíveis riscos, consenso e
consentimento. A noção de consentimento é mais complexa do que “sim” ou “não”. Na
cena, podem ser acordados detalhes em maior ou menor grau. Por exemplo, posso
querer um “spanking” [espancamento] com cinto mas não com as mãos. E esses limites,
em cena, são apontados a partir da “palavra de segurança” (ou safeword) dentre outras
dinâmicas.
A palavra de segurança ou safeword é um artifício que pausa a cena. É uma
palavra combinada antes da sessão que, quando usada, interrompe o jogo seja por
desconforto, dor, ou qualquer efeito. Durante atividades em que uma das partes esteja
impossibilitada de falar podem ser usados gestos (safegesture), sinos, ou qualquer sinal
de fácil acesso. A proposta é de que a palavra de segurança faz parte do jogo, ajudando
no mapeamento da sensações de prazer, e dos limites; por isso é um artifício que deve
poder ser usado com conforto e sem constrangimento. A safeword serve para que
“Não”, “Pare” etc sejam incorporadas ao jogo e isso não deixe brechas na garantia de
um jogo mutuamente prazeroso. Da mesma forma, um sistema de safewords pode
significar pare/diminua a intensidade/aumente a intensidade como a tríade conhecida
vermelho, amarelo e verde.
A safeword/palavra de segurança, os contratos, assim como a base SSC e os
protocolos de consentimento são estratégias usadas no contexto BDSM para afastar as
possibilidades de violência e abuso. O abuso está presente no meio BDSM da mesma
forma que se presentifica no contexto da sexualidade em geral. Me chamou os olhos ter
encontrado tanta preocupação e atenção aos casos de abuso dentre os grupos BDSM e a
importância entre as pessoas adeptas tanto de punição, em forma de hostilização do
abusador, quanto de inúmeras estratégias de prevenção da eterna ameaça da violência.
SSC é uma base de consentimento. São, Seguro e Consensual. Ou seja, estando
dentro desse referencial a prática está “afastada” de possíveis riscos como lesões
indesejadas ou “violência” e abuso sexual. SSC é tida como a sigla máxima do BDSM,
o princípio, um pilar. Foi cunhada pelo grupo New York’s Gay Male S/M Activists
(GMSMA) como afirma David Stein (2002), submisso e fundador do GMSMA, por
volta de 1983. Esse grupo era uma “organização sem fins lucrativos de homens gays em
Nova Iorque que estão seriamente interessados em S/M são, seguro e consensual”
(STEIN, 2002, p.1, tradução livre). A ideia é baseada em “Safe and sane”, uma
expressão popular na época, e na necessidade de promover a consensualidade. Prós e
contras do uso do SSC assim como de propostas alternativas foram debatidas por
representantes da comunidade SM/Leather na preparação para a March on Washington
for Lesbian and Gay Rights (Marcha pelos direitos Gays e Lésbicos de Washington) em
1987.
Esse “fundamento” funciona em determinados discursos como elemento
fronteiriço entre o que alguns consideram “ser BDSM” ou “não ser BDSM”, deixando
circunscritas à subcultura somente as práticas que respeitam a sigla e considerando
como “violência” os atos que não consideraram esse referencial. É por meio do SSC que
muitos argumentos anti-BDSM são rebatidos e ela se tornou um “padrão mínimo para
S/M eticamente defensável” (STEIN, 2002, p. 4). Afinal, se é são, seguro e consensual,
que mal tem?
Em 1983, o GMSMA’s se viu diante da questão entre se abrir para lidar com
todas as formas que o SM era vivido, incluindo serem atacados pela mídia quando
acontecesse qualquer denúncia casos de “sadomasoquismo” abusivo; ou limitar o
campo, demonstrando o interesse e a defesa apenas no SM São, Seguro e Consensual.
Longe de tentar inventar limites para a aceitabilidade das atividades, a tentativa foi de
diferenciar o bondage, a tortura, a dor infligida a parceiros dispostos e para satisfação
mútua, do abuso e da coerção a vítimas involuntárias. Dessa forma o grupo tentava
escapar das objeções ao SM – demonstrando que o constante policiamento a essa
comunidade não passava de fobia sexual, o reforço de tabus sobre o sexo e as
expressões de sexualidade. Stein (2002) ainda mostra a importância do SSC para os
membros da comunidade que, internalizando os preconceitos acreditavam que seus
prazeres os tornavam diretamente vítimas ou predadores sexuais.
A estratégia do SSC foi, essencialmente, uma articulação da linguagem que
inseriu no vocabulário sexual os termos do SM consensual. Os preconceitos
internalizados que Stein mostra tem a ver principalmente com a falta de linguagem que
diferencie a experiência de satisfação mútua do SM da gramática da violência, do abuso
a partir da qual o SM estava sendo pensado. Hoje em dia, o SSC tem sido também um
certo obstáculo em avançar os debates sobre a necessidade do diálogo, do
compartilhamento de fantasias, do estudo e do autoconhecimento para tais atividades.
Nenhum protocolo ou base, como o SSC, (nem a palavra de segurança), por si só,
podem impedir uma experiência ruim ou um abuso, mas elas apontam caminhos por
onde uma boa experiência pode começar.
Esse “fundamento” funciona em determinados discursos como elemento
fronteiriço entre o que alguns consideram “ser BDSM” ou “não ser BDSM”, deixando
circunscritas à subcultura somente as práticas que respeitam a sigla e considerando
como “violência” os atos que não consideraram esse referencial. É por meio do SSC que
muitos argumentos anti-BDSM são rebatidos e ela se tornou um “padrão mínimo para
S/M eticamente defensável” (STEIN, 2002, p. 4). Afinal, se é são, seguro e consensual,
que mal tem?
Meus incômodos com a sigla começaram tão logo me interessei pelas
psicologias críticas. São, se refere ao estado mental de cada corpa, seu bem-estar e
situação emocional, incluindo as alterações por consumo de álcool e outras drogas.
Nesse pensamento, uma sessão BDSM estaria infligindo o pilar tido como básico se
fosse precedida por exemplo, de algumas taças de vinho, ou se alguma das pessoas
envolvidas tiverem diagnósticos psiquiátricos. Além disso, sanidade é um conceito
perigoso, afinal é por meio dessa divisão entre sãos e doentes que BDSMers, tem sido
colocadas no eixo das patologias psi e da não-normalidade – assim como aconteceu e
acontece com algumas identidades sexuais e de gênero. Não é estratégico tentarmos
criar um limite de “insanidade” quer seja em pessoas, quer seja classificando as práticas.
Uma base de consentimento precisa, antes de tudo, funcionar para aquelas sujeitas, estar
consonante com os desejos e limites das praticantes, com seus estilos de vida e formas
de pensar o prazer. Não parece ser eficiente seguir um protocolo de consentimento que
não dialoga com todas as possibilidades de contexto mais amplo ou coloca uma sessão
BDSM em um espaço imaginário fora do cotidiano.
Segurança também era um termo que me deixava inquieta. Qual a noção de
segurança? E, se considerarmos “excluir riscos de vida/lesão”, já estariam excluídas
práticas como knifeplay, needleplay, eletroestimulação entre muitas outras, afinal, o
risco é implícito em algumas práticas e inexoráveis em outras. Assim como é no
bareback (fetiche acerca da penetração sem preservativo), “transar sem camisinha”, ou
pular de bungee jump. Risco, algumas vezes, é o elemento central do ato, motivação
para os desejos e provocador do tesão. Como assumir uma base de segurança em uma
prática que joga com riscos? Nesse contexto, falar em garantia de segurança aparenta
mais mascarar riscos do que dialogá-los, e a partir da partilha de informações, pensar
em redução. Há ainda outra reflexão importante, em casos de falha na segurança, é
comum a pessoa que está em posição Top ser responsabilizada por acontecimentos.
Mas, dentro do processo de acordo dos atos a serem performados, tanto Bottom quanto
Top têm responsabilidades – inclusive porque esse jogo deve começar em posições de
equidade, diálogo e consenso.
O consentimento tem sido visto no eixo das sexualidades e dos direitos sexuais
como a base que legitima as práticas sexuais. O debate sobre prazer e perigo nas
vivências sexuais, tem, segundo Filomena Gregori (2014) se concentrado nas noções de
consentimento e vulnerabilidade, em forma de práticas e discursos que se concentram
em evidenciar consentimento entre corpos envolvidos no ato e, na vulnerabilidade, a
partir da presunção de suas capacidades e incapacidades de consentir. Atualmente, a
noção de consentimento segundo uma vontade individual, uma decisão voluntária a
partir de um sujeito capaz se torna problemática em sociedades em que os indivíduos,
legalmente inclusive, não são considerados “iguais”. Assim, Filomena complexifica o
consentimento mostrando que, o “consentimento não presumido” circunda em diferentes
tons todas as posições sociais de vulnerabilidade.
Consentimento e vulnerabilidade ganham diferentes tons e importâncias, de
forma que um se sobrepõe ao outro na explicação de situações, colocando o sujeito
como ocupante de uma ou outra posição – em especial, na total vulnerabilidade a qual
são colocadas pessoas “vítimas” por médicos, legistas (GREGORI, 2014). “Quer dizer,
o problemático do consentimento está ancorado na complexidade da definição do
sujeito e de sua vulnerabilidade enquanto tal, ou seja, se ele é capaz de externar de
modo consciente o seu consentimento” (idem, p. 54). Filomena analisa que o SSC
funciona para a comunidade SM como revelador das mesmas preocupações em sentido
contrário, em uma tentativa “processualística” de abstrair a vulnerabilidade e centrar-se
no consentimento. Os protocolos, como o SSC, têm essa função de permitir que as
atividades sejam tomadas como eróticas e não como violentas, criando um ambiente no
qual se acredita que ” ao aprender e seguir aquelas normas práticas, o que poderia ser
visto como violência passa a ser visto e sentido como prazer.” (idem, p. 56).
Em vez de provocar reflexões sobre o que seria fazer SM eticamente, a premissa
SSC tem sido seguida quase como uma religião, da qual o SM não pode se separar sob a
pena de ser relegado ao campo da violência, do abuso. Popularizaram-se ideias como a
de que SM dentro do SSC é bom e fora dele, é ruim; e de que além de necessário, O
SSC é suficiente, absolvendo as responsabilidades de atenção, zelo, compaixão (STEIN,
2002). “Tornou-se literalmente um princípio: um marcador linguístico usado para
distinguir “nós” de “eles” (It has become literally a shibboleth: a linguistic marker used
to distinguish “us” from “them.) (idem, p. 1, tradução livre). Nós, BDSMers éticos, e
eles, estupradores?
As questões que envolvem o SSC ser colocado como um princípio para o BDSM
giram em torno da sua insuficiência e, mais uma vez, do estabelecimento de limite para
o que aceitável e não é. Quando foi proposto, o GMSMA’s não tinha por intenção que o
SSC se transformasse em um princípio, dessa forma quase ortodoxa, mas sim que fosse
um facilitador do diálogo entre as partes, algo que se opusesse a “descuido,
irresponsabilidade e desinformação” no BDSM.

Só porque uma interação S/M é segura, sensata e consensual, não significa
que seja bem feita, mutuamente satisfatória ou que vale a pena copiar! [Just
because an S/M interaction is safe, sane, and consensual doesn’t mean that
it’s well done, mutually satisfying, or worth emulating!] (STEIN, 2002, p. 5,
tradução livre).

Apesar de tudo, ter referenciais básicos no campo dos acordos que olhem no
sentido de garantir integridade dos pares, da observação criteriosa de seus estados
mentais, e dos movimentos de consentir e consensuar, soa imprescindível. Precisamos
de bases protocolares que não só tragam contornos à prática como estejam, como o
SSC, fortemente ligados à ideia geral de BDSM. Foi e é de extrema importância o
alcance que a sigla SSC ganhou “dentro e fora da cena” pelos esforços dessa
comunidade – por vezes impelida pelos questionamentos de sujeitas curiosas ou até
mesmo contrárias à subcultura BDSM. Foi o SSC que, por muito tempo, norteou
minhas práticas eróticas e atualmente, a premissa SSC está na mídia, nas matérias de
revista e blogs, e é ampla e profundamente discutida entre BDSMers.
Anos mais tarde, iniciando o mestrado, participei de uma oficina de shibari,
sobre a qual falarei mais a frente. Logo no início dessa oficina, a facilitadora tentou
economizar o tempo ao falar sobre isso para que pudéssemos partir para as amarrações,
mas trouxe uma proposta que jogou um facho de luz nas minhas inquietações sobre o
tema. Ela segurava no colo um pequeno notebook de onde mostrava alguns slides com
explicações “básicas” sobre BDSM. Uma de suas colocações problematizava o SSC, e
ampliava a crítica. Ela disse que SSC é uma das bases de consentimento, mas que
existem outras também organizadas em siglas, e orientadas de diferentes formas, e nos
apresentou a RACSA – Risco Assumido Consensual em atividades Sexuais Alternativas,
que segue a mesma proposta do RACK – Risco Assumido e Consensual em práticas
Kink (Risk Aware Consensual Kink). Gostei da ideia, pensar em riscos assumidos e
dialogados soou melhor do que sanidade e segurança.
RACK ficou popular nas comunidades BDSM por causa das insatisfações com a
proposta do SSC, que já eram presentes desde sua popularização nos anos 1980. Tão
logo SSC se popularizou nas comunidades gays e lésbicas norteamericanas estampando
camisas como um slogan direcionado aos interessados na LeatherCulture, apareceram
camisas com respostas em tom de brincadeira como “Unsafe, Insane and
Nonconsensual” (inseguro, insano e não-consensual). Gary Switch então, propôs o
RACK como um “slogan” alternativo ao SSC. Significa Risk Aware Consensual Kink,
ou Risco assumido e consensual kink. A proposta foi de abandonar a prerrogativa de
segurança em detrimento à uma ideia de reduzir os danos, de estudar os riscos. Além
disso, o termo “kink” foi adicionado para delimitar ao universo SM (SWITCH, 2001). A
tradução pode ser feita para perversão consensual ciente de riscos.
Assim como a RACK várias outras siglas já foram propostas em variados
contextos, apesar de algumas terem popularidade limitada. São exemplos PRICK
(Personal responsibility in consensual kink), RISSCK (Risk Informed, Safe, Sane,
Consensual Kink – Perversão Consensual Sã, Segura e de Risco Informado), PCRM
(Prática Consensual com Riscos Minimizados, SSS (São, seguro e sensual). Também
houve a proposta CCC ou os Três C’s, recebida por Stein (2022) após a publicação
sobre o SSC mas mais antiga que esta, que significa Committed, Compassionate,
Consensual (Comprometido, Compassivo, Consensual). E a 4Cs (caring,
communication, consent, and caution) delineada por D. Williams, Jeremy Thomas,
Emily Prior e Candace Christensen (2014). As bases são tentativas de criar um norte
que delimite a subcultura BDSM, e servem como esse elemento linguístico que permite
a associação direta das práticas que poderiam ser lidas como violentas, com o campo da
consensualidade e da imperatividade de consentimento. E elas são boas nisso. Seguir ou
não seguir essas bases estritamente não é o central, o mais importante aqui é estar ativo
no movimento de garantir consensualidade, o acordo, e o prazer mútuo.
Em uma das discussões em grupo de Facebook acompanhei uma postagem que
discutia protocolos de segurança, antes mesmo de fazer as entrevistas da pesquisa. A
pergunta inicial era de uma recém-chegada nesse grupo e ela perguntava se ali naquele
grupo as pessoas “seguiam mesmo o SSC”. Muitos comentários responderam a ela, em
tom de verdades definitivas. No fim, após muitas respostas confusas foi explicado a ela
que essas bases de consentimento têm servido como um guia geral sobre o que sustenta
o BDSM: o acordo mútuo. Essas bases assim como as chamadas “liturgias” não são
regras estanque a serem seguidas, mas referenciais para olhar na hora de construir seu
próprio protocolo, contrato, ou mesmo de imaginar uma cena. Protocolos são acordos
específicos feitos para determinado ato, seja uma festa, um bar, um encontro a dois. O
protocolo fala de desejos, possibilidades, limites, rituais, atitudes que disparam
respostas.
Depois disso, ainda na rede, conheci a ideia de uma dupla de BDSMers que
também se relaciona afetivamente. Ela contou que tinham três tipos de protocolo: azul,
lilás e rosa. Todos pensados detalhadamente pela dupla para três tipos de contextos
diferentes: os dias em que estivessem mais ou menos animados pelas atividades do
cotidiano; os dias que estivessem mais “hardcore”, com mais tempo; e outro, para os
dias que preferissem atividades “românticas”. Para cada uma dessas situações um grupo
de permissões, limites, rituais. Protocolos individuais, comunicação aberta e explícita,
invocando o movimento de olhar para si e descobrir seu desejo pra colocar em acordo
com o do outro, esse parece ser o cenário ideal de negociação.
Tive acesso a uma “lista”, parte de um contrato BDSM, compartilhada em um
dos grupos no Facebook. Nos comentários, a sugestão de que alguém fizesse a tradução
do documento. Ao fim do download, o arquivo BDSMChecklist.xls abriu na minha tela.
A planilha é parte de um contrato BDSM inicialmente publicado pelo site Bondage.com
e replicada em fóruns e grupos online. Ela conta com caixas para marcações sobre a
prática: Sim (farei); Não (não farei); Talvez/Vou tentar; Não aplicável; Limite brando;
Só com Mestre; Limite rígido; e um último espaço com indicações para contar seu nível
de experiência com tal ato. A lista é separada em práticas Related to sex [Relacionadas a
sexo], Bondage, S&M (sadismo e masoquismo), Fetish [fetiche], Power play [cenas de
poder], Role play [cenas], Bondage Toys [brinquedos para bondage], S&M toys
[brinquedos para S&M] e Fetish 2.
Anal sex (give); Anal sex (get). A lista começa com sexo anal, separando assim
como em outros itens, em “dar” e “receber”. Segue pelo uso de dildos, plug anal, sexo
oral, bissexualidade forçada, orgias, sexo em público, entre várias outras. Nas
especificações do Bondage detalhes sobre o desejo de ser amarrada/o por todo o corpo
ou partes, por quanto tempo, se nos genitais ou não, em público, com ou sem suspensão.
Além de citar possíveis materiais para as imobilizações como correntes, crucifixo,
gaiolas, camisa de força etc. Algumas práticas na subdivisão S&M são asfixia, tapas,
mordidas, choques, tortura genital, dilatações de vários tipos, chutes, tortura nos
mamilos, espancamentos.
Nos Fetiches estão as práticas de escatologia em vários níveis como chuva
negra, dourada (fezes e urina, respectivamente). Além de enemas, exibicionismo, cross
dressing, salto alto, uniformes. A maior das subdivisões é a das cenas de trocas de
poder, “Power play”, que começa com a 24/7/365 TPE, que significa Total Power
Exchange (Troca total de poder), ou seja, dominação/submissão 24 horas por dia, 7 dias
por semana, durante todo o ano. Seguem as práticas de controle do uso do banheiro,
restrição e modificação de comportamento, trabalho doméstico, coleiras, cintos de
castidade. As roles plays são as “cenas” como a Age Play (ou infantilismo), cuckold (ou
corno), rape play (ou jogo de estupro), sequestro, cenário médico, animal play, prisão,
prostituição fantasiosa, cenas religiosas entre outras. A lista segue com o detalhamento
de objetos para as práticas já citadas como agulhas, canos, facas, piercings, óleos e
outros.
Quis trazer alguns dos termos que encontrei no campo para ilustrar a que
atividades estou me referindo quando falo sobre BDSM. Práticas mais “comuns” como
o sexo oral ou o uso de dildos também podem ser possibilidades aqui, mas algumas
dessas práticas da lista, sejam “sexuais” ou não, não estão tão presentes no nosso
imaginário. Ao mesmo tempo que pode ser fácil imaginar uma cena na qual uma dupla
pratica “sexo anal” em um contexto de dominação/submissão, a imagem de uma sessão
na qual alguém leva chicotadas, usa coleira e/ou faz trabalho doméstico forçado “e só”
está distante da ideia normativa de sexo, da qual falarei mais adiante.
Online é possível encontrar uma grande variedade de vídeos e manuais feitos por
BDSMers4 ensinando as melhores técnicas para as práticas, os protocolos de segurança
e as discussões sobre consentimento. Há textos de pessoas ligadas à medicina e à
enfermagem com dicas e cuidados desde práticas mais simples como chicotear e açoitar
até as mais invasivas como enemas anais e inserções urogenitais. Além de vídeos e
revistas, e uma rede social exclusiva para BDSMers, o FetLife, há também um largo
mercado de objetos voltado para essa cena como as sex shops estudadas por Filomena
Gregori (2016) mas não apenas. Fábricas e lojas de lingeries, acessórios em couro e
látex, dildos, grandes objetos para amarrações, instalações para casas e quartos e muito
mais podem ser encontrados nas redes. Depois do lançamento dos filmes “50 tons de
cinza” diversas marcas de sex toys5 lançaram coleções especiais com o tema do filme.
A relação do BDSM com a mídia é um terreno delicado. Regina Facchini (2013)
mostra que o retrato do BDSM na mídia se dá segundo uma “equação entre erótico e
exótico” (p. 9) que se reitera ao expor vivências com intenção maior de desmistificar,
orientar novos praticantes e afastar a exotificação do que de lutar contra
constrangimentos mais institucionais. A jornalista e BDSMer Catherine Scott (2015)
analisou as configurações “homem Dom/mulher sub, mulher Dom/homem sub”, como
elas aparecem na cultura pop tentando responder a uma análise feminista. Ela usou
desde clipes de Rihanna e Madonna até clássicos do cinema como Secretária (2002).
A mídia é responsável por um sem número de estereótipos sobre BDSM (e
também sobre feministas). A proposta de Catherine foi olhar com uma “lente feminista
sexopositiva” para as categorias citadas em filmes, seriados etc. e desmistificar os
estereótipos, e essa aura de mistério que parece pairar sobre o tema “sadomasô”.
Algumas de suas afirmações iniciais são referentes à própria natureza do BDSM:
“BDSM é sobre ferir pessoas e forçá-las a fazer coisas que não querem fazer”,
“dominantes são pseudo-estupradores malvados e sedentos de poder”, “sempre envolve
sexo”, “é muito violento e doloroso”.
Além desses mitos, estereótipos de gênero que se reiteram sobre as posições de
Top e bottom, quando ocupadas por um homem ou uma mulher. Para ela a figura da
dominadora na mídia é como uma mulher que assume características tidas como
masculinas como agressividade e força, reforçando a lógica binária de gênero e
colocando como transgressora a mulher que se posiciona assim. O estereótipo da mulher
branca, cisgênero, magra e empunhando um chicote ainda é a figura de Domme
colocada pela cultura pop. O imaginário da mulher sensual, em roupas desconfortáveis,
de salto alto e látex aparece como única possibilidade imaginativa, excluindo pessoas
fora da órbita binária do gênero, que prefiram roupas largas e confortáveis para uma
sessão ou simplesmente corpos que não se restrinjam ao padrão branco/magro (SCOTT,
2015).
A mulher na posição de bottom também está sujeita a uma variedade de
estereótipos, tanto a partir do pensamento mais tradicional heteronormativo, quanto a
partir do feminismo. A lógica de que uma mulher submissa está reiterando uma suposta
“verdadeira natureza feminina” por um lado, e por outro, e a acusação por parte de
certos nichos feministas de uma “lavagem cerebral” do patriarcado. Catherine concorda
com Mollena Williams, feminista negra e bottom, que as imagens deturpadas
(HARRINGTON, WILLIAMS, 2012) que a mídia produz e reforça sobre BDSM só
podem gerar repulsa da sociedade. A cultura pop está recheada de imagens de mulheres
que se submetem a partir de personagens que estão em posição hierarquicamente
inferior a seus “Tops” como secretárias, empregadas domésticas ou alunas. Poucas são
as personagens que estão em uma busca ativa por esse tipo de parceria, mas muitas
aparecem sendo convencidas a estarem naquela relação, trazendo a gramática do abuso
para junto do BDSM. Mulheres lésbicas em cenas BDSM também são raramente
representadas na mídia, poucos casos refletem a problemática da estética direcionada ao
olhar masculino, reforçando ainda o corpo magro, branco, cisgênero como norma. Não
aparecem nessas representações as mulheres não-brancas, não-femininas, não-magras,
corpos variados que jogam com leveza e prazer, para satisfação mútua.
Ainda nesse livro, “Thinking Kink: The Collision of Feminism, BDSM, and Pop
Culture” (SCOTT, 2015), Catherine mostra como a cultura pop classifica homens em
papeis de submissão com sentimento de pena. Ele é visto como “deixando de ser
homem” quando se submete, é colocado como “patético”. Alguns enredos parecem
querer manter noções de masculinidade por outras vias, como escolhendo personagens
fortes e poderosos que demonstram de forma óbvia serem “mais fortes” que a
dominadora, e como ele poderia sair da situação caso quisesse. Há sempre uma ideia
pairando no ar de que a posição de sub é uma experimentação, diferente do cotidiano.
O desserviço prestado pela mídia à comunidade BDSM ao longo da história teve
um novo marco no lançamento dos livros e filmes 50 tons de cinza (2011). Essa foi uma
trilogia lançada por E.L James a partir de uma fanfic (história inventadas por fãs que
compartilham o universo fictício de grandes obras) do sucesso Twilight (Crepúsculo)
(sim, os livros do vampiro). O enredo mostra uma jovem jornalista tímida e sem
experiências que se entrega ao superpoderoso Sr. Grey após suas contundentes
investidas. Ele é um milionário jovem e traumatizado por abusos sexuais na infância por
parte de uma dominadora sádica. Reforçando mais um estereótipo, a moça não está, a
princípio, realmente interessada nos fetiches do rapaz que lhe presenteia com celulares,
computadores e outros mimos, em encontros românticos onerosos. Ela se apaixona por
ele e cede à um contrato BDSM que inclui além de atividades no “quarto vermelho da
dor” (uma sala com aparatos para BDSM que ela apelidou assim), ginásticas semanais,
consultas com médicos, ingestão de pílula anticoncepcional e dieta restrita. Ele, reluta
em revelar sua paixão e ela acredita que seu amor pode mudar o “defeito” do rapaz.
O livro foi lançado com um forte lobby em torno de ser “literatura erótica para
mulheres”, além do forte apelo para cenas detalhadas sobre o “misterioso” BDSM. E as
cenas são detalhadas, podem soar excitantes e partem da perspectiva de uma Anastacia
“virgem”, cujas primeiras experiências são narradas no livro com o Sr. Grey. Esse livro
reforça estereótipos sobre BDSM e por vezes naturaliza atitudes abusivas fora das cenas
BDSM, como a perseguição de Grey a Ana antes mesmo deles trocarem telefones.
Apesar disso, a trilogia também foi responsável por dar bastante atenção ao acordo de
palavras de segurança da dupla. Verde, para continuar; amarelo, perto do limite;
vermelho, interrompe a cena. Essa trilogia foi gatilho para muitas das postagens que
analisei neste trabalho, além de ter dado grande visibilidade ao tema BDSM por ter
estado por meses em cartaz nas grandes redes de cinema brasileiras (e mundiais).
Apesar disso a crítica feminista foi incisiva, algumas páginas radicais enxergavam uma
Anastacia sem nenhuma agência, apática e sem opinião, quando a personagem se mostra
complexa, tem dúvidas e não chega a aceitar as extravagâncias do pretendente,
colocando-lhe alguns limites.
Também é a partir da mídia que os repertórios sobre a estética BDSM se
atualizam. Não que a cultura do couro não esteja fortemente ligada ao BDSM, como
lembra Gayle Rubin em entrevista a Judith Butler (SCHOR, 1997), não podemos falar
de fetichismo e sadomasoquismo sem lembrar do impacto das grandes cidades e das
mudanças nas formas de produção de objetos. Ela fala no brilho do couro, da borracha,
na “fria qualidade autoritária dos equipamentos médicos” (p.85) e toda construção do
desejo da glamorosa modernização, mas o foco em corsets apertados, saltos altos de
látex e algemas reluzentes contribui para que esse cenário seja o único imaginário
possível do contexto BDSM. Traz uma ideia de que BDSM pressupõe artigos caros,
roupas especiais e acessórios próprios, gastos altos e lugares improváveis, quando
sabemos que muito BDSM tem lugar nos nossos sofás, no chão do quarto com
acessórios feitos por nós mesmas sob a luz do abajur e risadas. Esses estereótipos
estéticos alimentam além de fantasias, um mercado promissor.
O sucesso dos 50 tons foi só um marco na história do mercado que a cultura SM
suscita. Durante a presença em campo para essa escrita minha timeline ficou cheia de
publicidade SM, além de sugestões de páginas para curtir: sex shops especializados em
BDSM como o Marradamme Sex Shop, vendedores independentes de artefatos
artesanais como o Atelier Mestre Ferreiro, linhas temáticas sobre os 50 tons lançadas
por grandes marcas do nicho erótico, como a “50 tons” da Sexy Fantasy, entre muitos
outros produtos. Esse eixo foi estudando por Filomena Gregori em seu “Prazer e perigo:
notas sobre feminismo, sex-shops e S/M” (2004).
Em torno do BDSM, a sociabilidade em festas e bares foi estudada por Reginna
Facchini (2016), Marilia Loschi de Melo (2010) entre outras. Em São Paulo e no Rio de
Janeiro, cidades muitas vezes citadas nos achados do percurso e nas entrevistas, a
sociabilidade se dá em bares e clubes como o Bar da Gata BDSM Clube (SP), o Clube
Domina (SP), em festas como o projeto Luxúria (SP). Vale ressaltar que apenas uma
parte dos BDSMers é realmente participativo dessa “comunidade”, seja por questões
pessoais, políticas, geográficas ou preconceito, é preciso pensar em BDSM com sujeitos
perto da ideia de comunidade, mas também longe.
Facchini faz pontuações importantes sobre o fato de que no Brasil o BDSM não
está inserido na agenda dos movimentos sociais. Os embates políticos acontecidos na
década 1970 nos Estados Unidos não se refletem com força aqui, onde os embates com
o fundamentalismo religioso têm terreno nos direitos LGBT, nas pesquisas com células
embrionárias e no aborto. No Brasil o que ela chama de “comunidade imaginada” se dá
a partir da constituição de diálogos com movimentos fora do Brasil e no foco em
diminuir riscos e maximizar o prazer, e na intenção de desidentificar o BDSM do
discurso psiquiátrico dos “pervertidos”. Ela pontua que tal comunidade se imagina em
torno do sadomasoquismo erótico, fetiche ou BDSM tem articulações em diferentes
espaços de sociabilidade, com comunicação desde cartas ao uso das redes sociais, e
presencialmente em bares, restaurantes entre outros, espaços estes que são ou estiveram
ligados ao mercado erótico. Além disso, a política do faça-você-mesmo é intensamente
difundida, e a maior parte das atividades não tem por intenção o lucro. Ela ainda afirma
a referência à comunidade ou meio BDSM como um movimento que objetiva articular
práticas mais seguras, e afastar a patologização e a criminalização.
Essas definições, siglas e conceitos sobre BDSM estão longe de esgotarem-se,
há muito sobre BDSM que não está aqui, não só porque esta é uma pesquisa em
construção, mas porque existem inúmeras experiências e perspectivas nesse tema que
ainda se mostra com ares de “tabu”e “mistério”.

1.2 Transando feminismo: as disputas e as sexopolíticas

Ao “experimentar” e “falar” de feminismo e sobre o movimento feminista,
percebi sua complexidade interna e quis estudá-la cada vez mais, aliando meu
interesse em compreender que, ao mesmo tempo em que o feminismo alterou
a realidade social – através da abertura às mulheres da cidadania e depois da
conquista pelas mesmas do espaço público – também possuía uma alteridade
interna. Entendo que o feminismo brasileiro na atualidade é identificado de
maneira homogênea na literatura e no próprio campo, apesar de também ser
comentado, concomitantemente, que há diversas especificidades internas.
Que especificidades são estas e que importância o estudo delas pode trazer ao
campo feminista? (ADRIÃO, 2008, p. 20)

A ideia de que existe um feminismo único, com pautas e ações direcionadas, cai
por terra. O que costumamos chamar de feminismo é um campo (ADRIÃO, 2008)
amplo no qual diversas disputas de sentidos se fazem presentes. A noção de “mulher”
como sujeito político do feminismo tem sido colocada em cheque desde as
interlocuções das feministas negras, exemplificadas no texto “E eu não sou uma
mulher?” de autoria de Sourjoune Truth (1878), e das observadas diferenças colocadas
pelas feministas lésbicas. Da mesma forma, as contribuições do que tem sido chamado
Teorias Queer questionam a rigidez do gênero ampliando os sentidos desse termo.
Ao falar sobre feminismos, Karla Galvão Adrião (2008) propõe para fins
analíticos a separação em três esferas: acadêmica, do movimento social e
governamental. Nessas esferas, diferentes feminismos e feministas se relacionam formal
e informalmente, se contrapõem e dialogam através de teias político-comunicativas
(ALVAREZ, 2014, p.18) que vinculam pessoas, ideias, práticas e discursos. Não só
grupos estruturados, mas também indivíduos e grupos informais que se presentificam
nas três esferas e fazem soar suas vozes na política, nas universidades, nas ruas, nas
mídias etc. Os discursos feministas compõem um universo de significados.

Algumas logo iram retrucar que “aquelas” mulheres do partido, movimento,
ou sindicato tal definitivamente “não são feministas”; mas mantenho que esse
debate em si, tão comum e muitas vezes acrimônio, sobre “autenticidade” e
“pertencimento”, entre as incluídas e as excluídas, que mesmo recusadas em
alguns casos insistem em se autoproclamar feministas, é um dos
componentes discursivos que articula o campo feminista. (SONIA
ALVAREZ, 2014, p. 16).

Discursivamente, os feminismos se relacionam através do compartilhamento de
linguagens, sentidos e visões de mundo parcialmente compartilhadas e disputadas. As
vertentes, pautas e atrizes dessa teia ganham maior ou menor visibilidade ao longo do
tempo e dos espaços geográficos, tornando esse ou aquele discurso mais visível e
dando-lhe o status de “representante do feminismo”. Dessa forma, sob o signo
“feminismo” se debatem ideias e conceitos oriundos de diferentes epistemologias, que
se entrecruzam e contrapõem. Dessa forma, não existe um feminismo, mas feminismos
plurais.
E essa pluralidade é efervescente nas redes da internet. Segundo Carolina
Ferreira (2015), entender as relações entre ativistas on e off é central para abrir os
códigos dos feminismos. A internet tem sido palco para articulação de contatos,
tradução e disseminação de termos, ideologias e lutas feministas. A web permitiu a
produção de redes comunicacionais entre grupos já formados, ao passo que também
aparece como possibilidade de criação de novas redes de identificação e ação política,
que se amplia por não determinar uma “consciência feminista prévia” como possíveis
grupos offline.

(…) a faísca que me levou a questionamentos sobre feminismos e BDSM se
deu no contexto de me perceber militante feminista e ao mesmo tempo ter
interesse em sadomasoquismo, em BDSM. Estar em ambientes feministas
(como reuniões de coletivos, construções de eventos e atos, e o ambiente
acadêmico) e surgir o assunto sexualidade ou, especificamente BDSM, me
levava a cenas nas quais eu era questionada ou apontada sobre ser ou não ser
feminista caso assumisse me interessar por fetiches, por BDSM. E também a
situações nas quais as companheiras me apoiavam, diziam que deveríamos
abandonar a moral mesmo, e partir em busca dos nossos desejos, mas ligando
o alerta do perigo. Receber esses comentários era sintonizar uma frequência
reconhecida: a culpa. Se de um lado minhas vivências eram incentivadas, por
outro minha sexualidade era algo a ser controlado, tolhido, ou então que eu
“não me dissesse feminista”. A nítida sensação de que existiam “forças
políticas opostas se degladiando” no meu corpo. E o corpo era mesmo o lugar
dessa disputa, as possibilidades do corpo, que posições pode ocupar, para
qual direção deve apontar o desejo e para onde aponta realmente. (Diário de
Campo, 1 ago 2018)

Nas trilhas que segui desde o início dessa jornada, a primeira descoberta foi que
algumas de minhas questões são historicamente importantes para o feminismo. Essa é
uma história que tem sido contada a partir no norte do globo, em especial, dos Estados
Unidos (o que me diz tanto da necessidade de visibilidade a perspectivas descoloniais,
quanto do seu contexto de produção). A sexualidade nunca foi consenso entre as
feministas. No âmbito do momento histórico que vem sendo chamado “segunda onda
feminista”, o sexo, e assim a pornografia e o SM, entraram em discussão no que foi
chamado de “Guerras sexuais feministas”, as Sex Wars, mais fortemente nas décadas de
1970 e 1980. Aquele era um momento de intensa repressão da extrema direita
paralelamente ao auge da cultura hippie e da descoberta da pílula contraceptiva. Dessa
tensão, duas visões sobre a sexualidade e seus limites se contrapõem: as retóricas
antipornografia, e as linhas sexopositivas.
No cenário norteamericano perspectivas moralistas e tradicionais ameaçavam
retomadas em um movimento denominado New Right, um grupo da direita política com
propostas de fazer uma política diferente da “antiga direita”. Nesse momento ficou
evidente as diferenças entre os grupos feministas que se levantavam em posições
antagônicas. O grupo Women Against Violence in Pornography and Media, nasceu
1976 e, em 1979 o Women Against Pornography (WAP). Com argumentação
antipornografia, a causa angariou cinco mil pessoas em passeata na Times Square, bem
como apoio institucional em suas campanhas que promoviam também apresentações
informativas em sex shops e espaços de entretenimento erótico. Nos slides de
apresentação de suas ideias, pornô sadomasoquista como exemplo de pornografia que
induzia à violência, entre outros argumentos. Elas sustentavam que pornografia gera
violência contra a mulher, amparadas em conclusões da psicologia experimental cujos
métodos eram questionáveis pois as amostras de “pornografia” utilizadas não eram
representativas da pornografia como um todo.
O experimento de Edward Donnerstein mostrava cenas que misturavam sexo
explícito com violência. Os sujeitos eram questionados sobre terem ficado mais hostis
após o vídeo decidindo por agredir ou não agredir uma “vítima”, sem outra opção como
ficar só, sair ou – como é comum acontecer após acesso à pornografia – masturbar-se.
Elas também argumentavam que a pornografia era um retrato da violência contra a
mulher. Catharine Mackinnon, representante dessa linha, listou uma série de imagens
pornô que mostravam cenas como pessoas amarradas, cenas de pares urinando em si,
humilhação, tortura. Essas cenas eram raras e, evidentemente, se tratavam de pornô
fetichista. (RUBIN, 1993)
Com relação às retóricas antipornografia, esses grupos que fazem parte do
campo denominado como feminismo radical (FERGUSON, 1984; GREGORI, 2008),
eram compostos por uma parcela da comunidade lésbica, também tinham como pauta o
SM, a prostituição, a pedofilia e a promiscuidade sexual. Elas entendem a liberação
sexual das mulheres como uma “extensão dos privilégios masculinos” pois que as
relações sexuais são pautadas pela subordinação das mulheres e dominação pelos
homens. Essa distribuição do poder já seria constituinte dos significados sociais de
“homem” e “mulher” (GREGORI, 2008). Tal vertente é baseada numa visão rígida do
poder, que olha a assimetria entre homens e mulheres como estável. De base marxista,
Catherine Mackinnon afirma em seu texto datado da década de 1980:

(a) sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo: o que
é mais próprio de cada um e o que mais se tira de cada um (…) Assim como a
expropriação organizada do trabalho de alguns para o benefício de outros
define uma classe – a dos trabalhadores – a expropriação organizada da
sexualidade de alguns para o uso de outros define o sexo, mulher.
(MACKINNON, 2016, p.801)

Outras feministas se mostraram contrárias a essa visão. Em diálogo com
movimentos de gays e lésbicas, tendem a observar o poder de forma relacional. Ou seja,
de bases foucaultianas, um poder que não é dado, mas que se produz nas relações, que é
fluido e pressupõe a resistência:

(…) não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e
homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de
uma classe sobre as outras; mas ter bem presente que o poder – desde que
não seja considerado de muito longe – não é algo que se possa dividir entre
aqueles que o possuem e o detém exclusivamente e aqueles que não o
possuem e lhe são submetidos (…) O poder deve ser analisado como algo que
circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está
localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado
como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas
suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de
exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido
de poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não
se aplica aos indivíduos, passa por eles (FOUCAULT, 1998, p. 183).

(…) as relações de poder suscitam necessariamente, apelam a cada instante,
abrem a possibilidade a uma resistência, e é porque há possibilidade de
resistência e resistência real que o poder daquele que domina tenta se manter
com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto maior for a resistência. De
modo que é mais a luta perpétua e multiforme que procuro fazer aparecer do
que a dominação morna e estável de um aparelho uniformizante
(FOUCAULT, 2003, p. 232).

Dessa forma, vê a “sujeita” numa posição de maior fluidez por permitir que se
pense o próprio lugar como instável, não mais “oprimidas x opressores”, mas partes
ativas de uma relação de poder que se põe fluida. A perspectiva sexo-positiva entende o
sexo – e assim, a pornografia e o S/M – como um território semântico em disputa e não
como um problema, apostando na possibilidade de resistência. A pornografia e o BDSM
podem ser pensados a partir do feminismo e tomarem outro caráter.
Tal pensamento fundamenta os feminismos ligados ao movimento de liberação
sexual, “sexopositivas”, “pró-sexo”. Entendendo o corpo, a pornografia e o sexo como
possíveis lugares de ressignificação política para as mulheres e outras minorias sexuais,
“o prazer virou objeto de reflexão, assim como maneiras alternativas e as escolhas
sexuais” para buscá-lo (DÍAZ-BENITEZ, 2014). A proposta era de repensar o prazer, os
direitos, as práticas e as minorias sexuais (RUBIN, 1984) distantes da heteronorma. A
transgressão à tal norma tem grande poder de contestação dos limites impostos à
sexualidade e ao sistema de gênero, assim como cria novas identidades a partir das
sexualidades (GREGORI, 2008).
A vertente crítica ao essencialismo faz a defesa de que a liberação sexual das
mulheres pode ser empoderadora e coloca o prazer como direito fundamental. Essas
discussões foram foco na conferência no Bernard College (Nova Iorque) em 1982, cujos
resultados foram publicados por Carole Vance, na coletânea Prazer e perigo (1984). O
texto coloca a importância da tensão entre prazer e perigo na sexualidade das mulheres:
perigo, pois é necessário pensar em situações como abusos e estupros no contexto da
vivência da sexualidade; e prazer, pois há uma promessa de transgressão das normas no
uso da sexualidade longe do mero exercício da reprodução. O foco só no prazer e na
gratificação deixa de lado a estrutura patriarcal em que atuam as mulheres. Entretanto,
falar só de violência e opressão deixa de lado a experiência das mulheres no terreno da
atuação e da eleição sexual e aumenta, sem se pretender, o terror, o desamparo sexual
com que vivem as mulheres (FACHINNI, 2016). O livro é um marco no campo “pois
ele problematiza e recusa a associação da sexualidade aos modelos coercitivos de
dominação, assim como, a articulação desses modelos a posições estáticas de gênero em
um mapa totalizante da subordinação patriarcal” (GREGORI, 2008, p. 3). Ainda
segundo Filomena Gregori, Vance sistematizou o pensamento feminista sobre erotismo
criando uma “convenção” que ajudou a fundar um novo campo promissor, os estudos
queer.
Gayle Rubin foi uma destas feministas interessadas no campo das disputas sobre
sexo Antropóloga norte-americana, estudiosa das teorias feministas e de gênero, ela foi
também fundadora da organização lésbica sadomasoquista Samois, em 1978. Gayle, no
mesmo grupo que Pat Califia, fundou o Samois a partir de uma descendência do Cardea
– o braço lésbico da Sociedade de Janus, um grande grupo misto SM de San Francisco
(EUA). O Samois foi protagonista dos embates com os grupos antipornografia além de
produzir e registrar inúmeras contribuições ao campo SM, como ilustra o sistema de
códigos composto pelo grupo, na Imagem.

Figura 1- SAMOIS, The handkerchief color

Entre os problemas situados por Gayle em relação à retórica antipornografia
estão que o foco na pornografia relativiza o real problema da violência. “Onde tudo é
violência, então nada é violento” (PRADA, 2018, p. 48). Esse reducionismo expõe à
impossibilidade de denúncia BDSMers (mas também prostitutas, acusadas pelas
radicais de praticarem “estupro pago” e “venderem consentimento”), afinal como
poderíamos denunciar um estupro se estamos naquela cena “para isso”? Quando se
afirma que o SM é violência, significa que não podemos reclamar de abusos, já que a
coisa toda é o abuso em si. Essa ideia também fundamenta que existem mulheres que
sabem o que é um estupro (elas), e outras que não (nós) – relativizando o abuso e
desrespeitando aquelas que já sofreram estupros e abusos.
Monique Prada em seu Putafeminista (2018) argumenta sobre a demonização
das relações sexuais pagas, que impossibilita de vermos essas relações como objetos de
consensualidade ao mesmo tempo que leva a considerar diretamente como
“consensuais, adultas, saudáveis e prazerosas” aquelas relações que não são –
explicitamente – mediadas por dinheiro. Essa colocação me leva a pensar na
demonização das relações BDSM enquanto cenas que usam as diferenças de poder para
o prazer. Só são válidas as cenas que não envolvem o poder dessa forma? Será que
existe relação sexual não mediada pelas diferenças de poder, como Monique sugere
sobre dinheiro?
O argumento radical contra a pornografia, a prostituição, o sadomasoquismo
coloca esses feminismos muito próximos da agenda conservadora reacionária. A direita
política se apropria de tais argumentos, conceitos e linguagem como se estivesse
“ouvindo as feministas” e, dessa forma, se torna a voz mais ouvida no tocante à
pornografia, principalmente em tempos de aumento das regulações morais, que se dá
(àquela época nos EUA e, atualmente, no Brasil) no avanço do conservadorismo
político (RUBIN, 1992). Rubin aponta que o feminismo deveria se opor totalmente à
censura, apoiar a descriminalização da prostituição, lutar pela abolição de todas as leis
moralistas e sobre “obscenidade”, apoiar as trabalhadoras do sexo em todos os campos
inclusive na pornografia, garantir material sexualmente explícito e informativo além de
lutar pelas minorias sexuais e pela variação sexual humana.
Segundo Gayle Rubin (1992), há, no pensamentoo radical, uma ideia de que a
pornografia é necessariamente violenta, como se ela fosse pelo menos mais violenta e
sexista do que as outras mídias. Mas não é. Existem muito mais cenas de violências
contra mulheres em novelas e filmes do que na pornografia. E mesmo se pensarmos na
pornografia SM, ela é distorcida, recortada além de não ser representativa do contexto
geral da pornografia. Dessa forma, as regulações e visões negativas recaem sobre o tipo
de mídia sexualmente explícita (acusando de promover violência), mas não sobre as que
são violentamente explícitas, como a TV aberta. A pornografia é também um termo
aberto, e suas definições a partir da visão moralista e desse feminismo já colocam
degradação e abuso associados à própria ideia de pornografia.
As noções sobre agenciamento das mulheres também são pautadas por Anne
McClintock em seu livro Couro Imperial (2010) que questiona aquela tendência
feminista que vê as mulheres como vítimas não ambíguas como se os marcadores
sociais que carregamos (raça, gênero, classe etc) “determinassem”, de forma estanque,
atitudes e escolhas. Com isso ela coloca uma tensão estratégica entre limitações sociais
e atuação social, contando a história de Munby e Cullwick, uma dupla fetichista do
período vitoriano. Para ela o fetichismo é uma tentativa ambígua, contraditória e nem
sempre bem-sucedida de fazer negociações nos limites do poder, resultando em relações
mais complexas do que “domínio x submissão”. O SM é um teatro de signos, sobre o
qual circula um paradoxo de reiterar a obediência às convenções de poder, porém, com
uma ênfase exagerada em sua performance, que revela que essa ordem social é
inventada e performada, não “natural”. Ela questiona “Que tipo de atuação é possível
em situações de desigualdade extrema?” (p. 211)
Maria Filomena Gregori (2008) é professora e pesquisadora da UNICAMP,
também especialmente interessada nas relações entre violência e erotismo. Ela pondera
que a linha de pensamento da liberação sexual, por ter dado ênfase no prazer, fez com
que “o “lado” do perigo [fosse] tratado de modo simples como se o consentimento,
como um mero ato de vontade, garantisse sua tradução em prazer.” (GREGORI, 2008,
p. 4). Ela mostra duas linhas de pensamento sobre o desejo: uma que focaliza a
objetificação do corpo feminino; e outra que crítica a primeira por demonizar a
sexualidade, mas, delimita o olhar a relações em que se pressupõem “equidade”, como a
lésbica. Com isso, esse pensamento não trataria suficientemente a questão da violência.
“Como se por se tratarem de pessoas do mesmo sexo, o consentimento já fosse
garantido de antemão e a violência e o perigo transpostos para a arena dos prazeres”
(GREGORI, 2008, p. 6).
Em “Pensando o sexo” Gayle Rubin (2003) se coloca ao lado das minorias
sexuais e mostra que as relações sexuais não podem ser reduzidas ao viés de gênero e
que aquele feminismo não é o único, ou o melhor olhar sob o qual deve-se observar a
sexualidade. Segundo essa autora, tecnologias sociais como as leis e a mídia têm na
sexualidade seu alvo de vigilância e punição. As visões negativas promovidas pela
comunicação de massa, principalmente, incitam o preconceito e as violências físicas e
morais por parte do Estado, da segurança pública e da população. Além disso ela cita a
“falácia da escala mal posicionada”, pois que o sexo é sempre mais culpável que outras
atividades, como se fosse uma grande ameaça. Uma barreira invisível entre o bom e o
mau sexo parece existir sob a constante ameaça de que, caso “tudo seja permitido” essa
fronteira irá ruir e o sexo “assustador” vai para o campo do aceitável. Isso corrobora
para a não existência da variação benigna, ou seja, todas as atividades sexuais variantes
da norma são automaticamente consideradas negativas.
A perseguição ao que ela chama de “variedade erótica” invisibiliza sujeitas,
resguardada pela ameaça de um pânico moral como se, algum tipo de sexo em si
pudesse pôr em xeque a ordem da sociedade. “A ideologia sexual popular é uma sopa
nociva de ideias de pecado sexual, conceitos de inferioridade psicológica,
anticomunismo, histeria de massa, acusação de bruxaria, e xenofobia” (RUBIN, 2003,
p.15). Ela denuncia a existência de um sistema de hierarquia social baseada em
comportamentos sexuais. O bom sexo tem o status de “natural” e saudável, é
heterossexual, monogâmico, reprodutivo, feito em casa. No meio, as práticas sexuais
que conquistaram historicamente alguma abertura: o sexo hetero fora do casamento, a
masturbação, casais estáveis de lésbicas e gays em espaços próprios entre outros grupos.
Nas mais baixas “castas sexuais”, considerado como mau sexo, estão aquelas relações
com as sadomasoquistas, as travestis e transexuais, as fetichistas, e a prostituição e por
último, o sexo intergeracional (RUBIN, 2003).
Para os grupos sexuais que estão no topo, há o privilégio, a respeitabilidade,
suas relações têm amparo legal, garantindo a possibilidade de mobilidade social, suporte
institucional e sua “saúde mental” não é questionada. O outro lado, o mau sexo, fica
sujeito à má reputação, à criminalidade, desamparo institucional, médico e jurídico além
de ter sua saúde mental sempre questionada, diagnosticada como perversão. Outros
elementos importantes dizem respeito à invisibilidade e ao preconceito. Dessa forma,
somente uma pequena parcela da capacidade sexual humana e da variação entre
atividades sexuais é vista como positiva, segura e saudável, madura, legal e
politicamente correta. As visões negativas disseminadas sobre o sadomasoquismo
fazem com que pessoas interessadas nas práticas não acessem informações sobre
segurança, consentimento e prazer. Rubin (2003) pensa as sadomasoquistas como
minoria sexual ou minoria erótica e aponta as repressões sofridas por esse grupo, no que
diz respeito a direitos legais e aceitação social. A marginalização das minorias eróticas e
sua consequente vulnerabilidade legal estão no contexto de um sistema de opressão que

Corta transversalmente outros modos de desigualdade social, separando os
indivíduos e grupos de acordo com sua próprias dinâmicas intrínsecas. Não é
reduzível a, ou entendível em termos de classe, raça, etnicidade ou gênero.
[…] Algumas consequências do sistema de hierarquia sexual são meros
aborrecimentos. Outras são muito graves. Em suas manifestações mais sérias,
o sistema sexual é o pesadelo kafkiano em que vítimas azarentas se tornam
rebanhos de humanos cuja identificação, vigilância, apreensão, tratamento,
encarceramento e punição produz emprego e realização pessoal para milhares
de polícias do vício, oficiais das prisões, psiquiatras e assistentes sociais.”
(RUBIN, 2003, p.28)

A crítica de Rubin (2003) vai além, apontando que esse movimento repressor
parte também de comunidades gays e de feministas antipornografia – refletindo o
entendimento social e reforçando teorias do campo psi. A fronteira imaginária entre o
bom sexo e o mau sexo está sempre em disputa, especialmente nos eixos religiosos,
psicológicos, feministas e socialistas. Mas se em determinados discursos feministas
propõem-se posições de poder rígidas e comportamentos sexuais estáveis e a visão
moralista impera, o SM pode celebrar tais diferenças de poder, subvertendo e se
apropriando delas num jogo consensual e divertido.
As provocações que essa subcultura traz estão, para Foucault, menos ligadas a
descobertas sobre desejos sadomaso nos porões do inconsciente e mais às novas
possibilidades de prazer que o SM produz. É infeliz a ideia que liga SM à violência
como se fossemos seres extremamente violentos dando vazão à agressividade, quando
estamos inventando novos usos do corpo e erotizando atos “estranhos”, estamos
refazendo a noção de sexo, tensionando os limites desse nome. Para ele, é preciso
“dessexualizar”o prazer, ampliar, testar.

A idéia de que o prazer físico provém sempre do prazer sexual e a idéia de
que o prazer sexual é a base de todos os prazeres possíveis, tem, penso eu,
verdadeiramente algo de falso. O que essas práticas de S/M nos mostram é
que nós podemos produzir prazer a partir dos objetos mais estranhos,
utilizando certas partes estranhas do corpo, nas situações mais inabituais, etc.
(FOUCAULT, 2004, p. 264)

Foucault ainda pontua outro aspecto importante sobre identidades, importante
para pensar sobre a “comunidade” BDSM. Identificar-se é útil se servir para ampliação
do círculo de relações, para favorecer amizades e produções de prazer, para posicionarse.
Mas é inútil se a questão da identidade se torna o cerne da existência sexual da
pessoa, se serve como um fator a ser desvendado sobre si para depois existir enquanto
lei, código da sua existência – assim, a identidade retorna a uma forma de ética, como a
“heterossexualidade tradicional” (FOUCAULT, 2004).
A noção foucaultiana sobre o SM chama atenção para a diferença como o poder
se dá no SM e na sociedade. O poder social se caracteriza pela relação estratégica que
tem com as instituições, limitando a mobilidade por seus códigos muito bem
estabelecidos e institucionalizados. Enquanto relação estratégica erotizada, a dinâmica
de poder no SM é sempre fluida. Todos sempre sabem que os papeis foram
estabelecidos, que podem ser invertidos, acordos explícitos e tácitos definem essas
fronteiras. Segundo Foucault (2004, p.271), o SM não “reproduz, no interior de uma
relação erótica, a estrutura de uma relação de poder. É uma encenação de estruturas do
poder em um jogo estratégico, capaz de procurar um prazer sexual ou físico”. O SM é
um “processo de invenção”, utiliza uma relação estratégica para obter prazer.
Diferentemente da dinâmica na “vida heterossexual” normatizada, na qual as relações de
poder antecedem o sexo estabelecendo papeis, direcionando práticas; no SM essas
relações estratégicas fazem parte do “sexo”, são conhecidas e dialogadas.

Em um dos casos, as relações estratégicas são puramente sociais e é o ser
social que é objetivado; enquanto que no outro caso, o corpo é o implicado. E
é essa transferência de relações estratégicas que passam do ritual da corte ao
plano sexual, o que é particularmente interessante. (FOUCAULT, 1982, p.
272)

Dialogando com o pensamento de Gayle Rubin, Paul Preciado (2017) em seu
Manifesto Contrassexual, reflete, a partir da imagem do dildo, sobre a produção da
identidade sexual, pensando no corpo como lugar de construção biopolítica. De
opressão, sim, mas também como centro de resistência e de contraprodução do prazer.
A contrassexualidade, assim como a noção de sexopolítica, são indiretamente
provenientes do pensamento foucaultiano, para o qual a contraprodutividade das formas
de saber-prazer alternativas às sexonormativas, é a estratégia de resistência mais eficaz
ao biopoder – que produz disciplinas de normalização e determina formas de
subjetivação (PRECIADO, 2011; 2014). Para Paul Preciado (2011, p.12), “podemos
compreender os corpos e as identidades dos anormais como potências políticas, e não
simplesmente como efeitos dos discursos sobre o sexo”.
Preciado (2014) abandona a ideia de natureza como referencial – posto que esta
é também construída – e propõe pensar o sexo como tecnologia biolítica de dominação
heterossocial. Essa tecnologia funciona reduzindo o “corpo a zonas erógenas em função
de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino),
fazendo coincidir certos afectos com determinados órgãos, certas sensações com
determinadas reações anatômicas” (PRECIADO, 2014, p.25). O corpo “hetero” é
produto de uma sofisticada tecnologia que divide a carne e a arquitetura do corpo,
definindo órgãos por sua função e produzindo estruturalmente identidade de gênero e
colocações de “sexuais” e “reprodutores” aos órgãos. Assim, podemos pensar sobre o
gênero:

Gênero não é o efeito de um sistema fechado de poder nem uma ideia que
recai sobre a matéria passiva, mas o nome do conjunto de dispositivos
sexopolíticos (da medicina à representação pornográfica, passando pelas
instituições familiares) que serão o objeto de uma reapropriação pelas
minorias sexuais. (PRECIADO, 2011, p1)

Entendo a sexualidade como social, política e historicamente construída por
meio da linguagem, sendo assim tem significados instáveis que cambiam através do
tempo, da cultura e da geografia, estruturando o “dispositivo da sexualidade”
(FOUCAULT, 2004). A sexualidade é estruturante em termo macro e micro, por meio
da linguagem estrutura a realidade social e é elemento chave aos processos de
subjetivação. O sexo a sexualidade não são um efeito de uma repressão que nos impede
de viver os desejos, mas o resultado de um conjunto complexo de tecnologias
produtivas (PRECIADO, 2011). Para Preciado (2011) sexopolítica é “uma das formas
dominantes da ação biopolítica no capitalismo contemporâneo”. Dessa forma,
interligada ao sistema de gênero (RUBIN, 2003), ao capitalismo e ao racismo (hooks,
2000), a heteronorma como resultado de tal tecnologia, aparece como um sustentáculo
do sistema político. E essa tecnologia tem, como seu viés mais sofisticado apresentar-se
exatamente como “natureza”.
É importante refletir sobre o que é o sexo nas redes da sexopolítica, como faz
Preciado (2014), para deslocar o olhar sobre o BDSM. O sexo como tecnologia
heterossocial pressupõe certos usos do corpo, determinadas formas de obter prazer e até
o que é o prazer sexual em si. “A arquitetura do corpo [e do sexo] é política”
(PRECIADO, 2014, p. 31). Desterritorializar a heterossexualidade como propõe
Preciado passa por entender que o órgão sexual é a pele, e o dildo, o sexo de plástico
tem capacidade de produzir prazer (e deslocamentos) assim como “um órgão”. O dildo
aqui não é necessariamente um objeto fálico, mas o elemento protético que produz
prazer, pode ser um chicote, cordas, tapas, teclas… e o corpo.
As provocações da contrassexualidade estão nessas trilhas, do estudo dos
instrumentos e dos dispositivos sexuais. Para produzir a contrassexualidade, alguns
deslocamentos propostos são revisar a diferença entre sexo e gênero pois é o gênero que
funda o sexo, o gênero não é uma construção social afastada do sexo, “construído x
natural”. O biológico também é construído e ambos são tecnologias complexas do
corpo. O conceito de natureza é uma ficção discursiva. O binômio feminino/masculino
se apaga, e sujeitos são corpos falantes, textos socialmente construídos onde
reinscrevemos constantemente a heteronorma repetindo e recitando seus códigos. Além
disso, toda relação contrassexual tem como premissa o estabelecimento de um contrato
consensual entre todas as corpas participantes.

As práticas S&M, assim como a criaçao de pactos contratuais que regulam os
papéis de submissão e dominação, tornaram evidentes as estruturas eróticas
de poder subjacentes ao contrato que a heterossexualidade impôs como
natural. Por exemplo, se o papel da mulher no lar, casada e submissa,
reinterpreta-se constantemente no contrato S&M, é porque o papel tradicional
“mulher casada” supõe um grau extrema de submissão, uma escravidão em
tempo integral e para a vida toda. Parodiando os papeis de gênero
naturalizados, a sociedade contrassexual se faz herdeira do saber prático das
comunidades S&M, e adota o contrato contrassexual temporal como forma
privilegiada para estabelecer uma relação contrassexual. (PRECIADO, 2011,
p. 32)

Os prazeres dissidentes, os corpos insubordinados a essa ordem imposta como
“natural” são capazes de expor, questionar, subverter o sistema tecnológico que
estabelece e mantém desigualdades. Se o corpo é espaço também de resistência, é nas
práticas de prazer desse corpo que está a potência de mudar as posições de enunciação.
Interferir nas tecnologias de escritura do sexo e do gênero não significa trocar certos
termos por outros, nem de desfazer as marcas do gênero ou da heterossexualidade. A
partir dos “atos de fala” de Austin (1975), Judith Butler (2004) fala da performatividade
queer: a força da citação descontextualizada e da inversão das posições de enunciação.
A palavra que marcava a abjeção, quando proferida por nós ganha força contestadora,
produtiva. Reapropriamos os discursos, subvertemos práticas e símbolos, abrimos os
códigos da sexopolítica para hackeá-los.
No pensamento de Butler (1990), o gênero, produto desse sistema tecnológico,
está inscrito no corpo e se expressa por meio da performatividade em atos, gestos e
atuações, signos que fabricam e sustentam o gênero. Por seu caráter performativo, é
instável e está aberto a transformações. A tecnologia falha, está sujeita a brechas e a
subversões. Essa ideia de uma tecnologia do gênero, explicada por Teresa de Lauretis
(1994) descola o gênero da ideia de que ele existe a priori nos sujeitos, como traço de
uma suposta natureza, e o coloca como sendo o conjunto de efeitos produzidos por
aquelas tecnologias sociais nos corpos das pessoas, nas relações sociais e nos
comportamentos – seria, então, tanto o processo quanto o produto de sua representação.
Dessa forma, o gênero constitui um sistema simbólico maior que, dentre outras
coisas, atrela conteúdos culturais ao sexo dos indivíduos, baseado em valores e
hierarquias que estão ligadas à manutenção das desigualdades sociais. Para ela, a
construção social do gênero se desenrola atualmente na mesma medida que em tempos
passados, é a forma pela qual a tecnologia age. Isso acontece tanto nos espaços mais
esperados como a mídia, escola, medicina e família quanto na academia, nas teorias e
no feminismo (LAURETIS, 1994) e essa percepção do gênero construído também pelo
feminismo é particularmente interessante quando estamos falando da comunicação
online e em redes sociais digitais.
Filomena Gregori (2008, p. 579) lembra a reflexão de Judith Butler (2004), que
afirma o gênero ser um aparato implícito nas práticas sociais que produz e normatiza o
binário masculino/feminino, “uma prática de improvisação em um cenário de
constrangimentos”. A noção performativa do gênero de Butler e a ideia de uma
tecnologia de gênero que se inscreve nos corpos por meio de uma performatividade
desperta para um paralelo performático com as cenas BDSM descritas por Gregori:

Tome as experiências S/M como paródias: como práticas que mobilizam e
expõem com força dramática, mediante todo um repertório de convenções
culturais e sociais disponíveis, as assimetrias de poder, as materializações e
corporificações de normas de gênero, de sexualidade, bem como de outros
marcadores de diferença como classe, raça e idade. Para além da idéia
presente no senso comum de que o teatro não é a vida, tratar essas práticas e
decifrar seus enredos, cenas e cenários permite entender – até por seus
intrincados paradoxos – as convenções que organizam – também de modo
idiossincrático – as relações entre violência, gênero e erotismo. (GREGORI,
2008, p. 595)

Em Hacía uma teoría del performance, Richard Schenchner (2000) reflete sobre
a performance a partir do marco teatral, do jogo da encenação. Para ele, os atos
acontecidos neste jogo levam a uma segunda realidade, uma realidade “de modo
diferente” que faz com que o jogo não seja falso, porque ele provoca mudanças naqueles
que o compoem e no público que assiste. Interpretando Schenchner, María Elvíra Díaz-
Benitez (2015) nos ajuda a pensar nos prazeres perigosos, com sua observação da
produção pornográfica da “humilhação”.
Maria Elvira argumenta sobre o “plus” que o excesso nas “linguagens corporais
com uso da violência” traz ao ato – colocando a esses limites entre a “realidade real” e a
“realidade interpretada”, a instabilidade de uma “corda bamba”. Com isso, em seu
excesso, o ato se faz hiperrrealista. O momento de máxima eficácia destas performances
é denominado por ela de fissura – a fronteira entre o prazer e o perigo, entre a
representação do ato e o ato em si. A fissura é, nesse contexto, uma possibilidade
provocada ou não, que pode aparecer tanto na pornografia quanto no cotidiano geral da
sexualidade, inclusive quando pensamos em relações de amor romântico e afeto.
Tratando da produção pornográfica que acompanhou, Maria Elvira resume:

Em outras palavras, essas práticas não são estritamente reais porque são
encenadas. A teatralização as afastaria do repertório do snuff, do crash e de
outras imagens que se definem a partir da captação de experiências de
violência e abuso no plano do ordinário. Contudo, elas evocam esse ordinário
e, não podendo ser reais, tornam-se hiper-reais (mais reais do que o real): por
meio do exagero permanecem fiéis à estética da crueldade e,
simultaneamente, por meio do exagero lembram ao voyeur que se trata de
uma performance. (…) A fissura seria o estado, dentro da encenação da
crueldade, em que a exacerbação dos roteiros cria um efeito no performer no
qual são ativados os perigos subjacentes a uma prática estética do sofrimento.
O “choro real em tempo real” do qual falei algumas páginas atrás revela um
período em que são excedidos os limites da encenação, fazendo com que o
hiper-real decaia e se emaranhe com o real (DIAZ BENITEZ, 2015, p.76)

Ainda sobre as performances de “violência”, no SM Preciado (2011, p.108)
ajuda a pensar que “toda técnica que faz parte de uma prática repressiva é suscetível de
ser cortada e enxertada em outro conjunto de práticas, reapropriada por diferentes
corpos e invertida em diferentes usos, dando lugar a outros prazeres e a outras posições
de identidade”. Portanto, tanto as técnicas de tortura como eletrotortura e
chicoteamento, quanto as posições de poder estão no centro de uma reviravolta
completa dos usos destas técnicas. É um exercício de détournement (subversão,
reapropriação, detonação do uso “normal”) que interrompe e desvia os circuitos de
produção e disseminação do saber-prazer.
Seguindo as pistas da contrassexualidade, recebi um convite virtual por meio do
Facebook ainda em 2017. O convite veio de Fernanda Ximenes – pesquisadora do
PPGPsi UFPE com interesse em pós-pornô e feminismos – para participar de uma
oficina de shibari (uma técnica japonesa de Bondage, as amarrações) com Missogina.
Ela, Constanzx Alvarez Castillo (2014), é uma feminista lesbiana vinda do Chile, um
corpo queer, interessada em BDSM que escreve a partir de suas narrativas sobre ser
gorda, pós-pornô, políticas cuir[14] e BDSM em perspectivas anticapitalistas e
descoloniais. No convite, um aviso: Oficina não dirigida pra homens cis hetero. E a
descrição da oficineira:

Ativista lésbica anarko-feminista, performer e oficineira, proletária da
feminilidade, ativando desde o monstruoso, as dissidências corporais.
Desenvolve temas como a politização da gordura e do corpo, a
heterossexualidade como regime político, luta antipatriarcal e antiespecista,
pós-pornô, alianças com trans e travestis, hiperfeminilidade,
bondage/shibari/kinbaku e novas explorações com a dor, entre outros.
(PÁGINA DO EVENTO “WORKSHOP SHIBARI”, 2017)

Figura 2 –Workshop Shibari

O prédio onde fica a Suplex Xangai é antigo, no “centrão” do Recife, entrei e fui
indicada a subir por um grande elevador. O público da oficina foi um conforto, entre
amigas e desconhecidas, mulheres feministas, bichas e pessoas trans. Depois de um
lanche vegano e das apresentações, uma introdução ao BDSM para situar o que isso tem
q ver com o que iríamos aprender na oficina. Algumas pessoas nunca tinham ouvido
falar, outras estavam ali por isso. Missogina falava em espanhol e fazia questão de
traduzir do inglês, tão comum nessa cena, tantos termos quanto fossem possíveis. Ela
falava de corpos que se davam prazer, em “lesbianas” e “maricas” que acordavam
consentimentos, de pessoas além de seu gênero, mas com uma lucidez tipicamente
feminista de que estamos todos e todas em assimetrias pelo gênero e também por outros
muitos marcadores sociais de diferença.
Os corpos ali buscavam prazer além do que já temos por sexo, queriam sentir
sensações inéditas. Constanzx dividiu a turma em duplas, logo depois de
experimentarmos a textura e o peso das cordas nos nossos corpos. Dividindo a turma em
duplas, Constanzx demonstrava os nós e nos instruía nas amarrações. Kundaku é a
variante sensual do shibari, um tipo de amarração oriental que tem por intuito
imobilizar pessoas sem apertar e que havia sido usada por prisioneiros chineses nos
quais cada tipo de amarração indicava um crime. As cordas haviam sido lavadas por ela
antes da oficina, e sua textura era de um tecido grosso já usado, maleável. A presença
das linhas grossas na pele é sensível, o conjunto de linhas torcidas tem um peso que não
me causou dor mas que impedia completamente o movimento para fora da posição
inicial. Meus pêlos se arrepiaram aos primeiros toques da corda se arrastando na minha
pele, é quente, forte. Amarramos pernas, braços, pernas e braços, tronco, de pé, no chão,
de quatro, de frente. Alguns nós deixavam a possibilidade da amarradora segurar, puxar,
virar a corpa amarrada. Foi nessa oficina, no espaço compartilhado com essas pessoas
que eu absorvi os argumentos de Gayle Rubin e Paul Preciado. Havia mesmo uma
subversão ali que eu não conseguia visualizar nos 50 tons, nem no pornô BDSM
gratuito online.

Figura 3 – Oficina de shibari com Constanzx, 2017

Constanzx comenta em seu texto “Gordura y sexualidade: pespuntes de
prácticas BDSM” (2014) que vivemos, segundo a ótica de Deleuze e Guattari, num
mundo capitalista cognitivo integrado que nos afeta no nível econômico, mas também
no controle das subjetividades e nas produções de desejo. O capitalismo engole as
potências subversivas e as integra ao sistema, como ela exemplifica os movimentos
gays que lutam pelo direito de casar. Ela advoga por falarmos sobre o desejo
entendendo que ele é uma construção capitalista, como a heterossexualidade. Desejos
construídos que se passam por “naturais”

¿Qué tiene de feminista hablar de BDSM? ¿Qué tiene de político el
cuestionamiento de las prácticas sexuales heterosexuales? […]. Visualizo en
mi vida al deseo como una producción unida a mi asignación de género,
capaz de deconstruirse, y para lograrlo necesito volver a rearmar mi cuerpa, a
reconstruir las cuerpas que habito y que escapan a mi propia piel. Con ellas
buscamos creaciones de nuevas formas de placer, fugamos creativamente,
probamos, erramos, intentamos. Veo en el sexo el potencial político de
destruir las nociones normativas del género y roles asignados, nuestra
sexualidad tiene la potencia de no seguir con la línea sexo-género-sexualidad,
¿por qué no usarla como arma para desbordar el dispositivo de género?
(ALVAREZ, 2014, p. 144)

As leituras de Alvarez, Preciado e Rubin levam a pensar em um BDSM
praticado por corpos insubordinados, uma potência na desterritorialização do sexo e do
prazer, uma ampliação das formas de uso do corpo e uma reapropriação, um
detournément das próprias relações de poder. Parece que o BDSM grita que precisamos
rever as fronteiras discursivas entre prazer e violência, assim como o feminismo sempre
disse. Olho para o BDSM, assim como para a pornografia e a sexualidade em geral,
como um território linguístico em disputa. Não acho que por si só, esse jogo tenha
potência de libertar os corpos da tecnologia heterossocial tampouco acredito que tal
prática vá, necessariamente, de encontro ao feminismo. Gosto de pensar em BDSM
como uma tecnologia de produção de prazer que pode ser apropriada e significada de
várias maneiras.

O presente texto é parte da dissertação ““FEMINISTAS, TECLAS E TAPAS”
UMA ETNOGRAFIA VIRTUAL SOBRE FEMINISMOS E BDSM”
Disponóvel em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/38704

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