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Por que amo filmes pornôs

Texto de Denilson Lopes

Aonde os conduzia o rapaz? De que regiões remotas, de que
profundezas da memória emergira? Qual o passado, qual o futuro
que o haviam designado? Que necessidade misteriosa o fizera vir? E
de que arcano do passado era ele mesmo carregado até o arcano do
futuro? Não lhe acontecia pelo contrário uma contínua flutuação
num presente imensurável?
— Hermann Broch, A Morte de Virgílio, p. 47

 

Em tempos em que a pornografia está ao alcance de qualquer pessoa, por exemplo, no celular, e em que tantos artistas e militantes desconstruíram, reinventaram a pornografia, exaustivamente estudada por pesquisadores de diversas áreas, o que poderia escrever? Um modesto e despretensioso depoimento pessoal em tempos de moralismos crescentes à direita e à esquerda, entre fundamentalismos de todo tipo.

Ainda me lembro da primeira vez que peguei um filme pornográfico na locadora de vídeo que já fechou há um bom tempo. Já tinha mais de vinte anos, nos anos 80 do século XX. Não havia TV a cabo para os tais “canais adultos”, nem as TVs abertas tinham se rendido à erotização da virada do milênio. De qualquer forma, por mais que não tivesse nenhum problema intelectual, moral em discussões sobre pornografia, creio que demorei um bom tempo para finalmente ter coragem de pegar o filme escolhido na locadora. Apesar de decidido a alugar o filme, não deixei de fazer a locação com o coração batendo forte, como num primeiro encontro adolescente. Não conseguia entender porque a vergonha, a timidez, a emoção, mas ela estava lá, na boa hora em que demorei para me mover das prateleiras até o balcão.

Não me lembro do nome do filme. Anos mais tarde, vi o mesmo sorriso, os olhos azuis, por acaso na capa de um vídeo em outra locadora. Era uma casa com piscina. Parecia Califórnia, com rapazes de vinte e poucos anos, parecendo ter um pouco menos. Foi como se os personagens com que me masturbava antes, o Robin do Batman e o Pedrinho da primeira versão do Sítio do Pica-Pau Amarelo, tirassem a roupa, ganhassem corpo. Incomodava e fascinava a rapidez do sexo. Gostou, transou. Poucas falas. Olhares que diziam a mesma coisa, mesmo que não dissessem. Por mais que remeta ao mundo da imagem, dos simulacros, a pornografia não pode ser dissociada do corpo, da masturbação. A tristeza e a excitação de alguém diante da televisão. Como não lembrar da abertura de A Lei do Desejo (1987), de Pedro Almodóvar, que coloca o espectador de filme de arte no lugar do espectador de filmes pornôs, embaralhando posições e valores?

Não importa. Na casa vazia, estava batizado. Ainda demoraria a passar o constrangimento por pegar esses filmes, mas nunca mais ia demorar tanto tempo assim, como da primeira vez. Vício, religião. Lembro de um amigo que falava que ia rezar para se masturbar de noite. Meu imaginário se povoava por esses corpos, essas imagens. Logo me
cansava a fixação, os longos closes em paus, retirados de seus corpos, bem como o gozo encarnado em chuva de esperma. Gostava quando as cenas de sedução se alongavam, as carícias, os beijos. Corpos se enlaçavam.

Numa época em que o cinema era pra mim um mundo, esses filmes eram centrais no desejo. As revistas de homens nus foram perdendo o interesse, a não ser aquelas fotonovelas baratas de sexo explícito. Preferia cada vez mais os filmes. Dos casais passei para os trios e finalmente para as orgias; sentir-se perdido em meio a trocas de parceiros. Corpos múltiplos desejando, como se as saunas e quartos escuros fossem iluminados.

Não sei exatamente o que devo a esses filmes. O cientista político Michael Warner confessou um dia que quando viu filmes pornôs pela primeira vez numa cidade do interior, quando viu homens fazendo o que ele mal imaginava sonhar, foi como se sentisse liberado de seus fantasmas de culpa e anormalidade. Gostaria de dizer algo assim. Não me sentia culpado antes, me sentia silenciado. Não falava sobre meu desejo com ninguém, por temperamento, pela herança da ditadura que terminara em 1984, no mesmo ano em que entrei na universidade. Os olhos falavam. O corpo se sentia tocado, acariciado. Os pornôs também criaram expectativas que não se realizavam nos encontros sexuais. Paus grandes sempre eretos em performances vibrantes. Percebi logo que paus grandes demais podiam ser mais bonitos de ver, melhores na fantasia do que na realidade. Também os desejos nunca estavam num mesmo patamar. Nem sempre me excitava quando o outro estava excitado. Passados os anos, a excitação de transar em parques e saunas, debaixo da mesa de escritório, em motéis, transformou-se, e as melhores lembranças e os maiores prazeres passaram a estar, como nos fala Casanova, nos momentos que antecediam ao encontro do desejado, ou diria, depois, como no instante do sentir-se atraído, nos primeiros jogos, na descoberta do interesse, na curiosidade, no ficar abraçado, ficar no colo, botar o outro no colo e acariciar os cabelos.

O que aprendi com os filmes pornôs? Talvez tenham me despertado para práticas sexuais que não conhecia. Talvez as imagens tenham ocupado mais espaço do que pessoas, fazendo com que quisesse do outro o que uma fantasia pode dar. Essas imagens não diziam não. Estavam lá. Bastava pegar um filme na locadora.

Descobri negros, latinos e orientais, adultos e adolescentes, mas um gosto se fixou, a preferência por rapazes, encarnado, sobretudo, pelos filmes que a produtora Bel Ami fazia, e creio que ainda faz, no leste europeu, Praga, Bratislava. A trilogia de Lukas Ridgeston (1994-1995) foi um impacto, uma revelação. Não há falas, só uma voz em off. A música é suave. Não há cenas de sadomasoquismo, violência. Há uma delicadeza, uma discreta masculinidade, entre o menino e o homem. Não há pudor. As posições são alteradas no decorrer das circunstâncias e dos desejos. Lukas era o belo, de olhos claros, mas achava mesmo sexy Johan Paulik, que parecia mais jovem e transava com mais intensidade, ou Ion Davidov, com seu jeito de moleque levado, e o sério Martin Valko.

Falar que não raras vezes deixei de ver filmes de arte para ver e rever cenas de filmes dessa produtora pode parecer inesperado. Ou, no mesmo dia em que assisti a um filme de Kieślowski e também a Lukas’ Story II (1994). O sublime estava tanto no rosto de Irene Jacob, os lábios entreabertos no outdoor de A Fraternidade é Vermelha (1994), quanto nos lábios de Kristian Jensen quando ia gozar.

O sublime que esses filmes podem suscitar não está na associação com o sagrado ou com o abjeto, não tem mais a ver com transgressão e ética do dispêndio, na tradição do erotismo respeitado na academia de Sade, Bataille e Genet, para falar de alguns. Trata-se de um sublime pornográfico, midiático, em produtos culturais, banais, tanto melhor não tenham pretensão artística, como em produções mais pretensiosas, como Night Walk (1995), de Michael Ninn e Gino Colbert. Mais do que banalização e mercantilização, trata-se de um esvaziamento do caráter transgressor da pornografia, sua passagem para uma indústria como outra qualquer, como nos fala o protagonista de O Pornógrafo (2001), de Bertrand Bonello. Ou, como em Teatro (1998), de Bernardo Carvalho, fazer um ator pornô, chamado Ana C., declamar poemas que ninguém ouve enquanto goza, é mais do que uma desmistificação do mito de Ana Cristina César, é falar das frágeis fronteiras culturais em que vivemos na contemporaneidade.

Os filmes me deixaram mais só, me impossibilitaram de ter uma relação estável, ocuparam um tempo em que alguém poderia estar ao meu lado? Não se pode voltar atrás. Talvez tenha evitado também que eu ficasse com alguém só por causa do sexo.

Uma divisão se manteve: aqueles com quem transava na vida e nas imagens, aqueles que amava e com quem não transava, até que o amor e o desejo deixaram de ser tão absolutos. Mas nunca pude lidar com a falta de beleza, com o abjeto. Seriam esses filmes uma fuga do corpo com suas imperfeições, fluidos, porra, cuspe, mijo, fezes, peido? Corpo idealizado, preparado, modelado, quando não anabolizado, pelo menos esguio. Corpo sem barriga, sem marcas, rugas, dobras, pés de galinha, manchas. Corpo preservado, sem história, sem vivências. Anos mais tarde, soube da histórias dos modelos da Bel Ami que “envelheciam” e saíam da produtora. Lukas chegou a ir a São Paulo num festival Mix (1999).

Um frescor novo foi trazido pelos filmes brasileiros pornôs do fim dos anos 1990. Será que tal frescor vinha de ver a si mesmo um pouco representado? Seria isso? Morenos, negros, negros de pele clara. Ouvir sacanagens e em português. Ver os espaços transplantados: fazendas, casas de férias, quartéis. Ver não só os corpos colonizados pela cultura de academias, mas tipos normais, rostos marcados, irregulares, corpos em que a beleza vem até das desproporções. Não querer ser como na tela, não querer ter só a tela, mas levar as imagens como momentos de ternura que o tempo não apaga.

Não estou negando a indústria e todas as histórias de bastidores, ascensão e queda de ídolos, descartados por violências, drogas, crimes, como Sebastian Young ou Jarec Wentworth. Filmes como Hardcore (1970), de Paul Schrader, Boogie Nights (1997), de Paul Thomas Anderson, e The Fluffer (2001), de Richard Glatzer e Wash Westmoreland já trataram disso. Nem estou negando pornôs héteros em que as primeiras feministas e algumas radfems de hoje viram, com frequência, a sombra do estupro, da violência, da humilhação. Nos filmes pornôs gays, só consigo considerar as simulações de abuso como jogos, talvez por causa da má atuação. Pode ser que na posição do masculino, o fantasma de ser violentado não apareça tanto. Talvez a violência por si seja muito maior do que a mera violência sexual, no que se refere aos homens homossexuais. Não sei. São só memórias. Venham Justin Owen ou Timothée Chalamet, Björn Andrésen, Tadzio ou aquele que me manda mensagens pelo Grindr. Realidade ou ficção. Pouco importa.

Denilson Lopes (noslined@bighost.com.br) é professor associado da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de: Afetos, Experiências e Encontros com Filmes Brasileiros Contemporâneos (São Paulo, Hucitec, 2016); No Coração do Mundo: Paisagens Transculturais (Rio de Janeiro: Rocco, 2012); A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens (Brasília: EdUnB, 2007); O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios (Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002); Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (Rio de Janeiro: 7Letras, 1999); organizador de O Cinema dos Anos 90 (Chapecó: Argos, 2005). E coorganizador de Imagem e Diversidade Sexual (São Paulo: Nojosa, 2004), com Andrea França; Cinema, Globalização e Interculturalidade (Chapecó: Argos, 2010), com Lúcia Helena Costigan; Silviano Santiago y Los Estudios Latinoamericanos (Pittsburgh: Iberoamericana, 2015). Também escreveu Inúteis, Frívolos e Distantes: À Procura dos Dândis (Rio de Janeiro: Mauad, 2019) em conjunto com André Antônio Barbosa, Pedro Pinheiro Neves e Ricardo Duarte Filho.

LOPES, Denilson. “Por que Amo Filmes Pornôs”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 8, n. 21, jul. 2020. ISSN: 2316-8102
Disponível em: https://performatus.com.br/atravessamentos/filmes-pornos/

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